O CÃO E O ESPANTALHO 2ª parte >> Zoraya Cesar


Eu não sabia o que estava acontecendo, mas sabia uma coisa: não podia permitir que aquele cachorro dos infernos cavasse debaixo do espantalho. (Estão ouvindo? Olha ele ganindo de novo, o desinfeliz) 

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Tomei uma decisão que alguns podem achar radical, mas, para mim, perfeitamente normal. Coloquei veneno em alguns bolos de carne e espalhei em volta do espantalho. O cheiro estava tão bom que eu mesmo quase comi um. Agora aquele cachorro infeliz ia aprender a não mexer nos meus segredos.

Nessa noite nem o cachorro nem a velha bruxa desdentada deram o ar de sua desgraça – nada de uivos ou incensos fedorentos. Mas a filha, aquela desgrenhada, montou uma fogueira no quintal delas, e pendurou um caldeirão velho e descascado. Na certa, mais uma das quinquilharias que o marido comerciava. Dormi bem pela primeira vez desde que eles chegaram.

Sonhei que o cachorro estertorava em agonia depois de ter comido as bolas de carne. Foi um sonho bom. Até a hora em que comecei a ouvir ganidos e o som de garras arranhando o assoalho. Mesmo dormindo eu podia sentir um focinho gelado cheirando meu pescoço, um rosnar ameaçador no meu ouvido, seu bafo em minhas narinas, uma mistura de sangue fresco e carne podre. Eu me remexia na cama, agoniado, sem conseguir acordar, preso naquele pesadelo. Até que ‘ela’ veio me libertar.

Vestia as roupas que usei para montar o espantalho, e seus grandes e espantados olhos castanhos derramavam o mesmo medo de seus últimos momentos. Então, de repente, sua face se contorceu num esgar horrendo, uma enorme língua negra saiu de sua boca, e ela gorgolejou sangue e vísceras. Meus próprios gritos me acordaram.

Da janela pude ver que meu pesadelo estava apenas começando. O espantalho jazia ao chão, sem os ossos que o sustentavam, as roupas espalhadas, a máscara de Belzebu virada para mim, os olhos brilhantes. Os bolos envenenados restavam intocados, mas o chão estava escavado. A caixa! O maldito descobrira a minha caixa!

Minha caixa com os documentos e o machado sujo com o sangue ‘dela’, os ossos, tudo estava junto à fogueira acesa. Do caldeirão saía uma fumaça espessa e roxa, luminosa à luz da lua cheia. A velha pegava um osso de cada vez e batia naquele tambor fajuto de loja de halloween enquanto a filha ensaiava uma dança ao redor do fogo. Desgraçadas. Pensam que me enganam com essa pantomima mas eu sabia muito bem o que pretendiam - me chantagear e me extorquir. Eu ia dar uma lição naquelas embusteiras.

Ao me virar para pegar a espingarda e enfiar nas fuças daquelas cretinas, escorreguei em algo molhado e pegajoso. Não precisei acender a luz para saber o que era. Sangue. O chão estava encharcado de sangue. Trêmulo, me apoiei no parapeito e olhei para fora.

Não podia ser! Como era possível? Mais um truque, certamente.

Ela’ e a filha da desgourenta dançavam selvagemente ao redor da fogueira, que lançava chispas ao céu. ‘Ela’ usava as mesmas roupas rotas e ensaguentadas de quando a matei. A velha batia cada vez mais forte no tambor e parecia transformada, mais… jovem! De repente, as três mulheres suspenderam a dança macabra, apontaram seus dedos acusadores diretamente para onde eu estava escondido e começaram a entoar uma cantiga tão sinistra, que meus ossos, cobertos de carne, irrigados de sangue, se arrepiaram. Nesse momento, o cachorro, aquele filho do tinhoso, começou a uivar, e, com ele, todos os cães da vizinhança, uma alcateia de lobos bravios. De novo parecia que estávamos numa bolha em outra dimensão, pois a vizinhança continuava a dormir, alheia à balbúrdia.

Sentei-me na poça de sangue – que eu bem sabia de quem era – soluçando de pavor e frio. ‘Ela’ voltara dos mortos. Aquelas malditas a trouxeram.

Os uivos agora estavam atrás da porta. A maçaneta se mexeu. ‘Ela’ entrou. Ou melhor, parte dela. A cabeça e o rosto estavam macerados, o corpo parecia desossado, mas os olhos! Ah, aqueles olhos grandes, mansos e castanhos dela tinham virado carvões em brasa. Podia sentir seu o calor crestando minha pele. Tudo ao meu redor fumegava, o calor era insuportável. ‘Ela’ iria me queimar lentamente, uma morte horrível. Eu fui mais misericordioso, matei-a de uma só vez. E ainda poupei seus ossos e uma muda de roupa. ’Ela’ poderia ter a mesma consideração por mim.

Moscas enxameavam à minha volta, eu não conseguia gritar, e não tinha para onde correr, ‘ela’ impedia a minha passagem, os braços abertos em súplica, seu último gesto em vida.

Quando dei por mim, já estavam me carregando para fora de casa e me trazendo para cá. (Você consegue ouvir? Os rosnados? O som do tambor?). Ainda pude ver, e acho que isso que me abalou mais que tudo, o espantalho inteiro, os ossos no lugar, a roupa impecável. Mas, em vez do rosto belzebuzento, havia um crânio com os olhos vazados. Alguns homens desenterravam a caixa, como se nunca ela tivesse saído dali, como se a noite anterior não tivesse acontecido.

Antes de fecharem a porta da camionete que me trouxe para cá, a velha bruxa repulsiva abriu a bocarra vazia de dentes, uma fornalha do inferno, para mim, rindo um riso silencioso que não sai de meus ouvidos. A filha, aquela cigana de araque, usava um vestido preto de rendas e luto, sem maquiagem, a imagem da sobriedade. O marido e a criança vestiam-se de cortejo fúnebre. Para mim? Seus porcos! Não vou morrer, vou voltar e matar todos vocês, vou voltar, vou voltaaaar. O cachorro, gafeirento do capiroto, lançou a cabeça para trás e uivou, longamente. Ele, a velha, a filha, o marido... e também o espantalho, numa sinfonia tétrica enlouquecedora. Comecei a bater a cabeça na parede do carro.

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Sei que estou condenado. Eternamente condenado a sentir um frio glacial que não há coberta que acalme; a ouvir uivos, zumbidos e batidas de tambor; a sentir cheiro de sangue e carne podre. Mas o pior, pior mesmo, é que, quando fecho os olhos, por um instante que seja, ‘ela’ aparece, toda linda, para então se transformar no próprio Asmodeus, e me torturar com seus olhos vingativos de fogo.

Dá para trancar a porta? Os cães vão entrar! Deixe a luz acesa à noite! Preciso ficar acordado. Talvez assim ‘ela’ não apareça mais…

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LINK para a 1a parte: http://www.cronicadodia.com.br/2022/04/o-cao-e-o-espantalho-1-parte-zoraya.html

Comentários

Anônimo disse…
Eita. Essa foi estranha! E os defensores dos animais vão perturbar também!
branco disse…
"é uma missão não uma escolha."
um belo e sinistro final, que honra muito bem a primeira parte. um conto maior , referendando algumas verdades com o brilho habitual.
Uma missão...me fez retroceder e mergulhar nas sombras.
Marcio disse…
Zoraya, acho que você deve estar lendo muito Allan Poe. Esse texto vai provocar a perda total de muita cueca por aí. Que medo...
E, para usar a terminologia da minha filha, esse narrador (ou mesmo a autora) parece ter tomado Toddynho sem agitar antes. Que doideira...
Eita! Terror terrível total! Menina, você me dá medo... Realmente sua criatividade anda solta pelas terras do sem fim!
Érica disse…
Cruzeeeeeeesssss! Como diz Ivan Lins, Cru-cre corroro, eh
Treis-veis mangalo-eh!
Albir disse…
Meus ossos também estão arrepiados, e eu nem sabia que ossos se arrepiavam.
Acabou o seu conto? Para mim ele nunca vai se acabar. Toda noite vai tem mais um capítulo. E você dorme tranquila, né, Lady?
Alfonsina disse…
Wow, sou eu quem não vou dormir tranquila depois deste conto! Adoro quando as coisas acontecem no sonho e repercutem na vida real, esta dimensão paralela que você trouxe para este conto macabro. Que bom que justiça foi feita!! Rindo até agora do tambor de loja de halloween 😅 a bruxa velha sem dentes me fez lembrar da bruxa do livro « Stonehenge » do Bernard Cornwell!
Zoraya Cesar disse…
Anônimo - haha, foi estranha mesmo, né? Mas eu nao tenho culpa se o sujeito era de maus bofes e ainda teve o azar (ou o carma) de encontrar uma familia de bruxos.

branco - como sempre, uma honra seus comentários. Mergulhar nas sombras é requisito obrigatório para todo aquele que quer lutar pelo Bem, nao tem jeito.

Marcio - de todos os comentários generosos que vc já me fez, esse, sem dúvida, vai para os TOP TEN. Sem falar na metáfora da cueca, que foi outro BAITA de um elogio dentro do seu humor cáustico q eu adoro.

Erica - hahah, sei q vc nao gosta de histórias assim, obrigada por ter me lido, Amiguinha!

Albir - Dom Albir, vc me pegou. Durmo sim, confesso. Ainda mais depois de ler seus comentários hehehehehe.

Ana - tudo o que eu queria era isso, causar medo. Obrigada!

Alfonsina! 'wow' é seu comentário pra lá de generoso. hahahaah, eu tb ri com o tambor da loja de halloween, aquele assassino miserável até q tinha senso de humor. Tinha...
Márcia Bessa disse…
Eitaaaa, que dessa vez deu medo... Pisou fundo no terror, hein... Mas gostei.

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