SOL SOMBRIO - O AJOELHADO - PARTE II >>> Nádia Coldebella


O quarto parecia um cárcere com um pé direito muito alto. Escavado nas pedras, direto na montanha, tornou-se acinzentado com o passar dos anos. Para chegar nele, era preciso cruzar um pátio exterior, coberto de árvores e arbustos variados. Já ao pé da montanha, era preciso contornar alguns hibiscos que cresciam junto a um denso capim. Ali, seria encontrada uma escada íngreme e escorregadia cavada na rocha e oculta aos olhos do mundo, e era preciso descer por ela até chegar a uma porta pesada, feita de madeira úmida e ferro enferrujado.


Dentro do quarto havia uma cama de palha, uma velha mesa e um baú. Também havia uma janela alta, quase na altura do teto, escavada na pedra, coberta por uma cortina amarelo-sujo e cheia de buracos feitos pelo tempo. Por ela passavam tênues raios de sol que incidiam sobre uma criatura cuja condição humana era quase irreconhecível, tal o estado de sujeira e desleixo em que ela se encontrava. Barba e cabelos misturavam-se. Vestia farrapos e era tão cinza como as pedras escorregadias que serviam de chão. De olhos fechados, pendia o corpo para frente e para trás, ouvindo uma música inaudível, percebida apenas por aqueles que não poderiam ser vistos.

Estava ajoelhado, sem comer há dias. Primeiro esticara os braços para o alto, depois os colocara cruzados sobre peito, agora os deixava pendidos, semimortos, ao lado do corpo. Desejara muito no começo e havia rezado fervorosamente, mas fora muito humilhado. Logo compreendeu e agora não desejava mais nada. Só permanecia ali, esperando.  

No canto esquerdo do quarto, em frente ao homem, a escuridão densificou-se. Tão densa que parecia sólida, tão espessa que poderia ser tocada. O Homem Negro dentro dela permaneceu quieto. Seus olhos escuros eram brasas chamuscantes e impassíveis, cravadas no homem ajoelhado. 

No canto direito do quarto, em frente ao homem, a claridade intensificou-se. Tão intensa que parecia fogo, tão luminosa que poderia ofuscar os olhos. O Homem Branco dentro dela estava agitado e lançava faíscas luminescentes, esperando que o ajoelhado levantasse a cabeça, incomodado pela luz.

Mas o ajoelhado nada fez. Continuava ajoelhado, joelhos em frangalhos, esperando.

O Branco deu um passo, braço estendido à frente, aproximando-se. Ia colocar a mão sobre a cabeça do ajoelhado, era isso o que intencionava, mas desistiu e recuou quando sentiu os olhos do Negro sobre sua própria cabeça. O Negro havia crescido, asas abertas e aterradoras na escuridão. O Branco, acuado, encolheu-se, mas logo se recompôs.

Já abria as asas quando o homem ajoelhado, alheio a tudo, levantou-se. Foi até uma mesa de madeira, muito velha, e pegou uma faca que estava sobre ela. Dirigiu-se a uma das paredes, em que barro e pedra se misturavam, e começou a cavar. Pacientemente. Um buraco após o outro, uma pedra após a outra. Depois de algum tempo, caminhou com passos arrastados até o local onde estivera ajoelhado. Fez uma alavanca com a faca, na tentativa de remover uma pedra bamba do chão, mas falhou miseravelmente. Então, com as mãos, tentou levantá-la. Não deu atenção aos dedos que sangraram. Concentrou-se em usar as parcas forças para erguer a pedra. 

Embaixo dela, havia um livro embrulhado em trapos, emoldurado com um couro muito antigo carimbado de letras douradas que pareciam desenhos. O homem tomou-o cuidadosamente e o levou até a mesa velha. Rasgou uma parte de suas vestes e reforçou o embrulho. Repetiu o ritual uma, duas, três vezes, até ter certeza de que nada poderia tocar o livro. Carregou-o, como a um filho, até a parede e colocou-o no buraco. Preencheu tudo com terra e pedaços de pedra. Quando pareceu bem fechado, foi até um velho baú e retirou uma pintura antiga de Nosso Senhor Jesus e colocou-a na parede, deixando tudo bem escondido.

Ajoelhou-se em frente ao quadro e parecia orar, mas, na realidade, decidia. Na escuridão, o coração do Negro disparou e ele fechou os olhos quando o Ajoelhado passou a faca na própria garganta. O Branco avançou, suas mãos querendo tocar o coração do homem morto, mas o Negro, abrindo os olhos, golpeou-o com as asas e lançou-o para a intensa luz de onde viera. A luz apagou-se e o Negro dirigiu-se à porta do quarto, saindo e selando-a a um toque. Em seguida, subiu as escadarias,  deixando o homem ajoelhado, agora prostrado, decompor-se pelas mãos do tempo.


Continua em 10/03.


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Leia a primeira parte aqui:

Sol Sombrio: Os irmãos

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Caraca, Nádia, q narração! As palavras vaõ entrando pelos nossos olhos e nao tem nada q possa impedir. Extremamente cinematográfico! E brincadeira essa de dividir em capítulos. Acho q vou te subornar pra me mostrar o final!
sergio geia disse…
Nádia, Nádia, Nádia. Lia e pensava, o que essa Nádia estará aprontando? E você está aprontando alguma coisa, e uma das boas, hein? Concordo com a Zô, bem cinematográfico, e gosto bastante de suas descrições. E de frases como: "Se agitaram quando sapatos de couro negro, lustrosos e de bico fino, pisaram displicentes na água, manchando-as com um solado vermelho-sangue". Ótima essa frase. Bem misterioso o seu conto, sinistro, a tensão no ar. Esperando o próximo capítulo, espero, o derradeiro. Beijos!
Nadia Coldebella disse…
Valeu, Zô e Sérgio! Vou só dizer q nesse universo novo estou experimentando a aleatoriedade das coisas. É a primeira vez que passo pela experiência de a história me levar...
Albir disse…
Nadia vai sendo levada pela história e com isso nos arrastando aos seus subterrâneos. É assustador, mas vale como catarse para a nossa realidade que não está muito diferente. Beijos, Condessa!
Nadia Coldebella disse…
Valeu Albir! Fico à sua disponibilidade para novos e necessários assustamentos.

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