DAS TREVAS NASCI. PARA AS TREVAS VOLTAREI. - um conto de horror e morte >> Zoraya Cesar



Eu era um garotinho na alma, no corpo, nos risos. Cuidar da terra, dos porcos e galinhas, passar calor, frio, sede, cansaço, e matar escorpiões, muito trabalho e pouco dinheiro eram nossa realidade. Mas eu era feliz. 

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Eles vieram com a noite, seus gritos apavorantes enchendo o ar, o fedor de corpos suados, roupas sebentas e álcool barato atravessando as paredes. Sem uma palavra, meu pai me deu seu revólver, munição, um alforje com provisões e um beijo na testa. Pegou a espingarda e se preparou para lutar até o fim. Minha mãe, também sem uma palavra, correu a me dar todo o dinheiro que tínhamos, me abençoou e me trancou no armário com fundo falso da sala, que tinha uma saída secreta para bem além do quintal, uma rota de fuga que meu pai construíra quando os ventos começaram a soprar contra nós. Virou-me as costas sem olhar para trás.  

Uma voz gentil, mas soturna e imperiosa, sussurrou em meu ouvido “fica”. Fiquei, e o que vi definiu o meu destino. Ali morri pela primeira vez, perdendo minha alma de criança. Espero que algum anjo bom a tenha levado. Porque a que se criou ali pertenceria ao inferno.

Levarei para a outra vida a cena do que aqueles cães do inferno, movidos pela selvageria e cobiça, fizeram a meus pais. Podiam simplesmente ter nos expulsado, mas preferiram a barbárie. E isso também definiu o inexorável destino deles. 

Enquanto destruíam a casa, procurando por mim, a voz misteriosa sussurrou ‘foge’. De longe, vi a fumaça e a luz das labaredas da minha casa queimada subindo ao céu, enquanto meu coração, também em chamas, transformava-se em cinza eternamente ardente. 

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O que são 10 anos? Nada. Uma partícula de pó nas areias da eternidade. Dizem que o tempo passa como o ruflar das asas de um beija-flor. Eu lhes digo que o tempo passa como um prisioneiro caminhando de joelhos com uma bola de ferro acorrentada aos pés. 

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Uma cicatriz larga descia do canto do meu olho esquerdo até a ponta do queixo, desfigurando minha fisionomia. Conseguia segurar um cavalo brabo pelas rédeas e jamais perdia uma briga corpo a corpo. O Colt que meu pai me dera pendia no meu quadril. Eu o sacava com rapidez mortal e certeira. Acostumara-me a tocaiar e emboscar na floresta, silencioso e indetectável como um lince. Minhas botas de couro de búfalo eram macias, podia andar quilômetros com elas, sem me cansar. Um chapéu preto e puído escondia meus olhos, que de verde puros passaram a cinza incandescente. Meus olhos eram a última coisa que desgraçados viam antes de morrer, e essa imagem os assombrava pela eternidade. 

Quando a voz me disse ‘está na hora', selei meu mustang cor de umbra e cascos de bronze. Suas narinas expiravam um ar que queimava à morte, destruição e ruína. 

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Encontrei dois deles acampados às margens do Skæbne, o deserto mais inconstante e mortal do mundo. Passava do frio enregelante ao calor escaldante, da chuva torrencial ao sol inclemente de um minuto para o outro. Poucos sobreviviam à sua crueldade. Eu, com minha alma gelada e coração em brasa, era um deles. E meu corcel infernal. E os lobos. 
 
Escalpelei, emasculei e cortei-lhes os jarretes. Carreguei-os, nus, descalços e sangrando deserto adentro. Antes de deixá-los ali, mostrei-lhes meus olhos, para que levassem com eles essa imagem para o abismo sem fundo que seria seu novo lar. 

Aquela foi a primeira noite, desde que perdi minha alma, em que dormi de olhos fechados. Dormi embalado pelo som da chuva, pelo uivo dos lobos e pelos gritos malditos, que, finalmente, apagaram de meus ouvidos os gritos de minha mãe. 

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Os lobos sabem guardar segredos, mas os pássaros não. O terceiro condenado soube do ocorrido com seus comparsas e me surpreendeu, quando eu fumava, descansando debaixo de uma árvore. Ele apontou a arma para mim e gritou, selvagem e feroz, como fizera naquela noite sinistra,  pensando que eu ainda era o menino assustadiço que fugira da morte dos pais, abandonado pela sorte e pela vida. Ele não podia imaginar que meu desespero fora acolhido por Ekdíkisi, o demônio da vingança. 

Mas do destino ninguém escapa, e o dele fora traçado naquela noite malfadada. Seu erro me deu tempo para sacar, atirar e acertar-lhe o estômago, onde doi mais e a morte é lenta. Joguei-o no Poço da Ruína, um poço fundo de paredes lisas e inescapáveis e cujas águas ferventes eram controladas por um ser malicioso e cruel. O último reflexo de luz que ele viu foi o dos meus olhos. E sua expressão de terror frente à inexorabilidade de uma morte pavorosa tomou o lugar da imagem do rosto sofrido de meu pai que eu carregava. E, desde que morri pela primeira vez, finalmente consegui dormir uma noite inteira. 

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O último deles encontrei ajoelhado num templo. Pedia aos céus para ser poupado da minha ira. Como suas preces não eram dirigidas a mim, não as escutei. Ele devia ter rezado com mais afinco. Pendurei-o numa árvore, e, antes que as trevas de sua alma se apagassem lentamente, em agonia, mostrei-lhe meus olhos, para que ele reconhecesse a face da vingança. Naquela noite, pela primeira vez, sonhei com minha vida anterior. 

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Cavalguei em direção ao ocaso da tarde Eu bem sabia que a voz que me guiara até ali viria me buscar e que meu lar, após minha segunda morte, não seria no Paraíso. Estava tranquilo quanto a isso. Cumprira minha missão. Agora, aproveitaria o tempo que ainda me permitiriam viver para ajudar àqueles que não podiam se defender. Seria uma vida dura, mas não mais dura do que eu levara até ali. E, de qualquer maneira, um dia eu seria livre. Senti-me feliz. 

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Essa hitória foi levemente inspirada nos temas das músicas do The Heavy Horses, grupo
de um gênero musical que eu gosto demais, o dark country. Abaixo, a música que me 
me inspirou, Hell awaits, e sua tradução. 


Comentários

Nádia disse…
O que dizer desse seu lado sombri, querida Lady? Só que eu amei essa balada do pistoleiro vingador, da justiça-vingança em pele de homem.

Pra mim que estou acostumada com os sarcasmos de suas histórias, é surpreendente te ver numa escrita tão nua e pura. E eu a-do-rei.

Sério, deixa essa sombra crescer, vamos ver onde ela alcança!

Bjsss!!!
Anônimo disse…
O clipe combinou com a crônica! Infelizmente há muitas histórias reais assim. No fim da segunda guerra, aliados barbarizaram geral, até como "prêmio" que um general francês deu a seus comandados! Mas a história tem sua versão contada pelos vencedores!
branco disse…
Jonah Hex com muitas pitadas de Sam Peckinpah. Milady fazendo incursões em novos territórios, mas com o GPS do bom gosto ligadíssimo e que de tao bom dispensa trilha de Ennio Morricone.
Sandra Modesto disse…
Um conto muito bem construído. O que não é novidade quando a Zoraya escreve.
Marcio disse…
Eu sempre gosto quando a Zoraya resolver extravasar a Nêmesis que habita sua imaginação.
Mas fico me perguntando: e se esses criminosos que foram massacrados pelo narrador tivessem filhos que não viam os pais como os bandidos que eram?
Haveria uma segunda rodada de vinganças? E daí uma terceira, uma quarta...?
Justiça? Vingança? Crime? Violência? Em que circunstâncias se pesa uma vida pela outra? Em um mundo nada perfeito, quiséramos ter a força necessária para equilibrar as forças que demandam entre si..
sergio geia disse…
Você me conquista a cada leitura. Delícia te ler. Beijo grande!
Anônimo disse…
Justiça? Vingança? Quantos de nós, pelo menos uma vez , em pensamento que seja, não fizemos uma justiça assim? Atire a primeira pedra quem nunca
Albir disse…
Sempre há novidades. Uma tortura nova, um demônio recém-promovido, um deserto que passa pelas quatro estações em uma hora. Um conto de fadas!
E você ainda disse que tem uma versão pior. É a primeira vez que o terror vem com a promessa de piorar!
Mas eu vou me acostumando, o masoquismo é o meu destino e paraíso.
Érica disse…
Wow! Lady Killer ao estilo faroeste! Meio pesada a história, apesar de realista. Mas, como sempre, muito bem escrita!
Zoraya Cesar disse…
Pessoal, agradecida DEMAIS❤️

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