SETEMBRO DE MANHÃ >> Sergio Geia

 

 
Encontro folhas caídas ao chão. São tantas, mas tantas, que logo noto: não são somente folhas caídas ao chão. O que eu vejo, então? Um carpete, acolchoado, macio, a relva amarela é um berço que acolhe os rebentos que caem do tronco pelado; vontade de deitar. 
 
De repente vejo: uma vadia. Não, são duas vadias, três, quatro, muitas folhas vadias. Folhas vadias esvoaçantes, que dançam e brincam na brisa da manhãzinha, diria Caio. Vejo um banco vazio, quero assistir. Talvez o espetáculo de folhas voando ao sabor da brisa só interesse a mim. O homem montado na bicicleta desdenha, passa alheio atropelando o show; o casal de namorados que esticou a noitada não tem pressa, mas só tem olhos para o amor; a moça de branco deve seguir para o trabalho. Eu fico na minha, vagabundeando, como ficava na infância a assistir o desenho das nuvens no céu. Até me esqueço de mim tamanha a paz que me domina, é tão bom. 
 
Surge um gavião. Explico. Na verdade, minha ignorância no assunto é absoluta e não me permite identificar um gavião. Outro dia, porém, meu tio, vendo a ave pelo jardim, me garantiu: é gavião. Eu observo o gavião. Anda com a cabeça erguida, o peito estufado. Então desanda a correr, a vítima, um pobre pombo. Já imagino o pior. Mas o pombo voa, tranquilo, sem demonstrar qualquer medo do predador. O gavião fica ali, parado, macambúzio, indeciso sobre o que fazer agora. 
 
Resolvo caminhar pela praça. Num banco sombreado uma garota lê um livro. Me aproximo curioso, mas com cuidado. De cara, pela fachada enfumaçada da capa, reconheço: Ian McEwan, Sábado. Está tudo perfeito demais, penso. Primeiro, folhas vadias, como o desenho que a Camila Giudice fez para a capa do meu livro. Depois, o gavião, tristonho após ser achincalhado pelo pombo. Por fim, a menina que não tem nas mãos um celular, mas um livro, um Ian McEwan.
 
Na padaria peço um suco, morango e laranja, por gentileza. Foram dois anos afastados, mas enfim, eu sento à mesa de uma padaria para tomar um suco. Como fiz há três anos. Prestes a fechar o “Folha”, pedi um suco e fiquei ali, revisando papéis, selecionando as crônicas que entrariam no livro. A sensação agora, meio vaga, é de liberdade, como se a vida estivesse querendo voltar ao normal. Será? 
 
Quando chego em casa, minha primeira reação é sentar à frente do computador e escrever. Não demora muito e a primeira frase aparece. A crônica então, fresca como a primavera que chegou, começa a nascer: 
 
Encontro folhas caídas ao chão. São tantas... 
 
 
 
ILUSTRAÇÃO: Pixabay 

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Que bom, Sérgio! A cronica é linda, profunda, um convite a viver um dia de cada vez, plenamente. Espero que a nova fase que se abre pra todos nós (será?) seja muito muito profícua pra você, nosso cronista das pequenas coisas!
Maria Ilda Andrade Pires disse…
Parabéns, Sérgio! Lindíssima crônica!
Júlio Inácio disse…
Linda crônica.
sergiogeia disse…
Obrigado Nádia,Maria Ilda e Júlio. Foi uma manhã especial. Que bom que o retrato agradou.
Zoraya Cesar disse…
Ah, mas eu gosto demais dessas suas crônicas, Sergio! Por mais pessoas que apreciem o passar da vida em folhas vadias.
E que foto maravilhosa vc escolheu, hein? Quase tão linda qto suas pelavras.
sergiogeia disse…
Zô, querida, grato mais uma vez. A foto é do Pixabay,

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