A MULHER DOS GATOS >>> Nádia Coldebella

Eu, literalmente, sou a mulher dos gatos. Uma mulher dos gatos não é uma dona de gatos. Os gatos é que moram com ela. Geralmente são achados, adotados, acolhidos.

Aqui na minha casa moram cinco, dois de propósito, três por acidente. Pantufa, Samantha, Nutella, Y. e Agatha, a gata. Mas é lógico que não chamo nenhum pelo nome de batismo, prefiro um bom apelido ou um nome estranho.

Samantha - vulga Sami, SamiCleusa ou Sami-anta, quando faz besteira - é branca como um floco de neve. Minha filha mais velha, Stella, uma criança autista pra lá de criativa, foi quem a encontrou, trouxe para casa dentro de uma bolsa e a batizou. Tudo por causa de uma cena de Frozen 2, em que Olaf, procurando seus amigos, grita:

- Ana, Elsa, Samantha... Quem é Samantha? Eu nem sei quem é Samantha! - A piadinha ficou repetitiva, como é típico nesses casos naquela cabecinha, e só cessou quando a gata foi batizada. Uma gata gentil, firme e delicada. Uma fofa.

Samantha é uma das gatas de propósito. Os três filhotes, agora já mocinhos, são o acidente, também provocado indiretamente pela minha querida autistinha. Explico. Samanthinha estava bem trancada, aguardando a castração. Por estar no cio, a castração novamente havia sido adiada - as outras cinco foram por causa da pandemia. Certa manhã, minha filha acorda serelepe e decide:

- Eu quero filhotes. - Disse Stella, abrindo a janela e causando os três acidentezinhos maravilhosos alguns meses depois.

arte: Aquarela de Nádia Coldebella

Apesar de gostar muito de gatos, confesso que a experiência foi bem assustadora, pois nunca imaginei que eu, uma virginiana neurótica, veria minha casa se transformar num gatil. Portanto, perpetuei o apelido de Sami-anta. E fiquei num conflito: entregar para adoção ou não?. Na verdade, decidi quando nasceram, o dilema era só aparente, pois quem cuidaria como eu?

A experiência de acompanhar a gravidez gatística também foi algo incrível. Ver a barriguinha dela crescer, ensinar às minhas filhas o respeito e o cuidados, o zelo pelo bem-estar da mãezinha, foi algo muito bacana. A melhor parte foi acompanhar todo o parto dos gatinhos com elas, estar ali, do lado da gata, vendo cada um deles nascer e já reconhecer o jeitinho de cada um. 

Samantha foi mãe exemplar, dedicadíssima. Confesso que aprendi e me identifiquei muito com ela. A maternidade nos aproxima. Eu estava extremamente empática, reconheci certos "sentimentos", sabia o que a incomodava, percebia o que ela precisava. E ela parecia saber que eu sabia, pois me procurava quando a coisa apertava.

- Você é a mulher dos gatos, serve pra isso. É claro, também serve pra me dar comida, água, carinho e limpar meu cocô. - Aposto que ela pensava exatamente isso.

Falando sério, acho que não é muito diferente se a gente é humano ou se a gente é bicho, a natureza dá um jeito de providenciar essa capacidade de maternagem. Em certo nível é muito parecido, talvez por isso me identifiquei, por isso me vi tão próxima dela. Mães são todas iguais mesmo. Pelo menos as que amam.

Gatos, como humanos, tem personalidade própria. Há quem não goste deles, há quem tenha medo deles. Eu digo que tudo é por falta de conhecimento ou por preconceito. Gatos são seres amorosos e dedicados, porém são assertivos e não toleram invasões. Eles conhecem o seu espaço pessoal e são muito bons em ensinar para humanos abusivos o respeito a este espaço. Gatos tem uma grande capacidade de ensinar a amar de forma independente, sem grudamento e sem anulação. Amor de gato não é gosmento, é um amor sincero e autônomo, que te ensina a ser livre e a libertar. Gatos te ensinam amar mantendo seu espaço pessoal. Acho isso incrível e fico admirada como eles expressam essa característica de formas diferentes.

O Nutela, por exemplo. Ele é o menino da família, também chamado de Nuty, Nutelístico ou Nutelinha, dependo do humor da mulher dos gatos. Ele é um ser forte, de aspecto leonino, branco como a mãe, mas de temperamento dócil e afetivo. Ele acorda a Giovana, minha filha mais nova, pela manhã, subindo em cima dela, fica de pé perto da mulher dos gatos, para ser pego no colo e receber carinho. Ele é puro afeto, um ser derretido e açucarado em forma de gato.

A irmãzinha dele, a Y (Ypslon mesmo) tem esse nome, porque é branca como a neve, mas tem um Y desenhado nas costas. Encurtamos para Ipi; quando alongamos vira Ipi Ipi Hurra!!! Ela é a mais meiga dos três. É doce e energética, gentil e delicada. A Ipi adora colo, mas quando quer solidão ou quando algo a incomoda, não arranha nem sibila, apenas dá um miadinho fofo, quase imperceptível, e se afasta lentamente. Ela tem um quê de uma criança especial, uma meiguice peluda de rabo ouriçado quando encontra algo pra brincar.

Agatha, a gata, ou apenas Agathinha, é a mais nova dos três, a menorzinha dos três, a mais estressadinha dos três. Ela é muito doce, com aquele rabo todo preto de ponta branca. É um amorzinho, uma lady, uma dama, uma verdadeira rainha de copas, que alterna para o modo demônio em apenas três segundos:

- Eu te amo, humana... rom... rom... Não me toque! Eu vou te matar com minhas garrinhas delicadas e fofinhas!!! Cortem as cabeças!

Todos nós já sofremos com suas garras. A mulher dos gatos aqui já pegou o jeito, sei certinho como amansar essa aprendiz de capeta: falo firme, faço um carinho na cabeça e dou um beijinho. Ela se derrete, desde que eu não a toque em parte nenhuma. O mesmo não vale pra mim, lógico, já que usualmente ela decide que eu sou uma espécie de poleiro. 

Mas de todos eles, nada se compara a minha Pantufa.  Panti, Pantufilda. Minha gata siamesa velha, extremamente fofa e macia, pantufística, antissocial, rabugenta e xarope. Não gosta de barulho, não gosta de novidade, não gosta de colo, não gosta da algazarra da família gatínea. Nada de estranhos, humano. Não use óculos, humano. Não fale alto, humano. Seu espaço pessoal ocupa um raio de dez metros, e, se invadido, causa medo paralisante no invasor. Seus olhos azuis são como raios lazer prescrutando o rosto amedrontado do pobre mortal que ousar permanecer em seu reino. Ela usa botinhas pretas e máscara da mesma cor, anda como uma rainha e adora ficar sentada no muro. Minha casa é sua propriedade, minha mobilia é seu trono real. 

Pantufa está comigo desde o primeiro mês de nascimento da minha filha mais nova. Ela tem onze anos. Eu a encontrei numa noite chuvosa, muito pequena e encolhida, tremendo de frio. Seu primeiro ato foi morder profundamente o meu dedo (perdi aquela unha!) e depois se aconchegar no meu colo. Ela cresceu com as minhas filhas e com minha família. Todas as noites, ela abre a janela (ela mesma abre), pula na minha cama e dorme aos meus pés. As vezes se enche de mim e me trai, dormindo aos pés de meu marido. Quando ela dorme eu nem me mexo, que é pra não incomodá-la.

Eu adoro esmagá-la, pois sou a única a quem ela ataca, alem do próprio rabo. Minha gata é vesga, autista e me ama. Eu não sou só a mulher dos gatos pra ela, sou um tipo de mãe. Ela me segue e me cuida, quando eu chamo ou assovio, ela vem. Nunca me abandona e quando eu demoro, ela está na porta me esperando, cobrando o meu desaparecimento, minha ingratidão humana. Como posso deixar alguém como ela sozinha? 

Ontem ela foi internada. Está gravemente doente. Nós estamos apreensivos, pois minha Pantufa sempre teve uma saúde de ferro, nunca adoeceu. Curiosamente adoeceu logo depois de mim. Eu estive com Covid, recentemente, foi uma situação assustadora. Me senti muito mal. Cogitei morrer. Pantufa ficava o tempo todo perto de mim. 

Já me disseram que os gatos filtram as energias do ambiente, que alguns ficam doentes no lugar dos seus donos. Baboseira, quero minha gata rabugenta de volta. Ela está longe de mim. Minhas filhas estão sofrendo, eu também. 

É que já moraram outros dois gatos aqui em casa. O Mingau, vulgo Mingo Star, e a Meg - Meglaine Feliz. Mas não moram mais, moram no céu dos gatos. Quando partiram a gente levou muito tempo pra se acostumar. Eles vieram, nos amaram demais, e foram embora rápido. Foram tirados de nós. Pantufa já estava aqui, Samantha chegou muito tempo depois, apenas quando conseguimos achar um lugar pra ela. 

Pois se alguém acha que pode colocar alguém no lugar de quem se perde, comete um enorme engano. Quando alguém parte, precisamos dar adeus, mas aquele lugar nunca será ocupado. Animais ou humanos, em um coração somos insubstituíveis. Quem fica, precisa sofrer a dor da perda e aprender a viver sem aquele que partiu. É uma coisa tremendamente difícil.

Mas nem eu nem ninguém aqui em casa queremos dar adeus pra Pantufa. A verdade é que eu espero que ela viva muitos anos e veja minhas filhas crescerem. Uma gata velha e rabugenta como ela não pode ficar longe da mulher dos gatos.

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Veja aqui o Olaf chamando por Samantha


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Nádia, a cada texto, a comprovação de que vc é a primeira e verdadeira Countess Velvet. Que texto maravilhoso, comovente, divertido, profundo. Foi um prazer enorme. Além de contista, cronista. Espero que sua ranzinzinha do coração se restabeleça.
Maria disse…
Melhoras pra sua gatinha! Legal sua crônica.
Albir disse…
Que interessante, Nádia, seu mundo dos gatos! Atualize-nos, de vez em quando, com a evolução dos bichanos.

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