INFORTÚNIOS >> Carla Dias


Conheceu quem desviasse o olhar dos infortúnios – e da responsabilidade sobre eles –, evitando-os como se fosse possível descartá-los. Quem os elaborasse de forma que soassem mais aceitáveis, durante conversas formais. Quem indicasse culpa, que era sempre alheia, uma dívida equivocadamente debitada, que deveria ser reencaminhada a outro desafortunado.

Conheceu quem creditasse a propagação de infortúnios a algum pecado ou erro burocrático, dependendo do tema que estivesse em alta, no momento do apontamento. Quem fizesse um documentário sobre o pensamento positivo como estancador de infortúnios. Havia quem oferecesse o serviço de ficar diante do santo de preferência do cliente, joelhos dobrados, fazendo o mesmo pedido, até que ele fosse realizado. Evidentemente, havia uma cláusula do contrato que definia o quando seria esse até. Havia pacote para oito, doze ou vinte quatro horas, só que o mais contratado era o de dois dias, com intervalos de cinco minutos para ir ao banheiro, sem direito à soneca. Custava uma fortuna, e, sim, incluía jejum.

Conheceu esse senhor, vizinho de um tio, lá do interior de lugar qualquer. Indivíduo dado ao silêncio, observador que não se importava em deter-se no mesmo assunto ou pessoa por horas, bastava que o tal lhe despertasse curiosidade. Ele tinha um prazer imenso em desvendar acontecidos e autores de acontecidos. Por muitas vezes, fez pessoas suplicarem para que ele não repetisse a história, que, com clareza, leu neles. 

Não era mesmo de repetir histórias, assim, atendia facilmente ao desespero dos lidos. O que realmente o fascinava era conhecer os tais... os infortúnios. Especializou-se em tantas versões de infortúnio, que havia quem dissesse que o homem conhecia todas elas. Ele não acreditou nisso, mas sabia que era quase isso; que o quase pode ser extremamente poderoso.

Foi esse senhor, figura alegórica, que adorava uma boa solidão, que leu os infortúnios dele. Aquele não foi dia fácil de se viver. Primeiro, ele exigiu que o velho retirasse o dito. O dito tá dito, meu filho. Depois, usou toda sua eloquência para rebater a leitura feita. A cada palavra dita, a cada desculpa apresentada, ele se convencia que só havia verdade no que ele julgou ser mentiras.

A gente esquece que infortúnio também é página do livro da vida. Acontece com todo mundo. Pode ser diferente no conteúdo, mas é acontecimento comum a todo ser humano. E se você caçoa do infortúnio, tentando fazer de conta que ele não existe, o dito se exalta, se apruma, fortalece.

Conheceu tantos dos que evitam infortúnios, mesmo quando há muito – muitos – em jogo. Eles não se importam em adaptá-los, torná-los suvenires de projetos extraordinários, abençoados por deuses que almejam honrarias e confetes, que querem ser agradados por dinheiros e poder, tornarem-se líderes de seguidores guiados por promessas vazias.

Conheceu quem lhe explicasse o papel do infortúnio na vida das pessoas. Explicou tão bem, que não restou questionamento. Para o conhecedor de infortúnios, desprezá-los era nadar contra a corrente. Evitá-los era plantar semente de tragédia. O senhor, taciturno e um tanto cáustico, disse que melhor seria se sentar – feito naquele filme, em que um homem fica de cara com a morte –, e escutar o que o infortúnio tivesse a dizer. 

Ele o fez e passou a conhecer.

Conheceu quem se tornou hábil em vender o conceito de que infortúnios eram meros obstáculos superáveis. Bastaria dedicação para convertê-los em vitórias. Tais vitórias eram citadas como se fossem catarses catalogadas, com custo-benefício definido. Eram negociadas como resultados de cenários imaginados pela mais pobre versão que a imaginação poderia oferecer. Ainda assim, eram muitos os dispostos a se tornarem clientes dela; a usar essa imaginação limitada como provedora de poderosa verdade para que eles, sujeitos exaustos, antes mesmo de começarem a lidar com a realidade, pudessem ter uma folga.

Aprendeu que infortúnios acontecem e não respeitam folga. Aprendeu.


Imagem © blizniak por Pixabay 


carladias.com
Baseado em palavras não ditas

Comentários

Paulo Barguil disse…
Aprender é um fortúnio. :-)
Zoraya Cesar disse…
feito naquele filme, em que um homem fica de cara com a morte - O Sétimo selo! Grande Carla Dias!

Aprendeu que infortúnios acontecem e não respeitam folga. Aprendeu. - mais uma das frases q deviam constar em livro.

Esse seu estilo inconfundível já nasceu clássico. Grande texto!
Carla Dias disse…
Paulo, é isso, aprender com os infortúnios é um fortúnio. :) Beijo!

Zoraya, sim, O Sétimo Selo. Aquela cena é sei lá... rs. Obrigada, viu? Beijo!

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