A ESTÁTUA DOS INELTEPNAC - 2a PARTE >> Zoraya Cesar.

A ESTÁTUA DOS INELTEPNAC 1ª parte  Meu tio encontrara uma estátua antiga que, aparentemente, pertencera ao misteriosamente desaparecido povo Ineltepnac. Chamou o eminente Professor Sondaar-Dief para atestar a veracidade de sua descoberta. Achava, meu tio, tratar-se de uma deusa da fertilidade. Não podia estar mais enganado. Perigosamente enganado.

Que bonita era! Uma mulher alada de mais ou menos 1,60 m, em terracota, fresca e conservada, como se esculpida recentemente. Ela parecia... macia! Tive o bom senso de não a tocar, ao contrário de meu tio e do Professor Sondaar-Dief, que lhe passavam as mãos, fascinados. 

Nua, suas formas arredondadas e cheias traziam promessas de noites longas e sensuais, sugerindo fertilidade, exultava meu tio. Não, contradizia o Professor: as mãos estendidas, súplices, o sorriso lúbrico, o cabelo comprido e encaracolado demonstravam ser uma deusa do amor dos Ineltepnac. 

Embora indubitavelmente bela, mas continha uma malignidade tão óbvia, que me espantava eles não o perceberem. O riso de seus lábios era sardônico e cruel; o olhar, oblíquo; suas asas, pontiagudas e angulosas, não sugeriam benignidade, mas beligerância. As mãos nodosas, os dedos curtos, ligeiramente encurvados, mais pareciam garras, e não ofereciam nada de bom. Eram, antes, um chamado à decadência, à destruição, ao excesso. Lembrei das palavras da minha tia: “aquela coisa era desgraçada”. 

Nesse momento aconteceu-me algo totalmente inusitado e extremamente estranho: um raio de lua escapou por entre as nuvens, iluminando meu rosto; minha mente desligou-se do instante presente e tive um vislumbre de memórias ancestrais reveladoras, lendas, rituais, magias dos Ineltepnac - e de quem era a deusa representada por aquela estátua. Juro a vocês que vi os olhos dela se voltarem para mim, estreitando-se de ódio.

(Não me perguntem, por favor, como isso aconteceu. Até hoje não sei explicar; e, se não fossem as sequelas que até hoje carrego, duvidaria de tudo o que ocorreu depois. Mas estou me adiantando. Voltemos, pois).  

Tudo passou muito rápido. As memórias, no entanto, ficaram. Ficou também algo, ou alguém,  uma espécie de entidade, não sei - e acho que nunca saberei - dentro de mim, partilhando minha mente. Confesso a vocês que estava apavorado. Nunca tivera uma experiência mística em toda minha vida. 

Até que convenci-os a voltar, dizendo que, cansado como me sentia, não conseguiria decifrar os dizeres esculpidos na base da estátua - sou linguista com especialização em línguas antigas (e mortas, como o ineltepnateco). Meu tio e o Professor discutiam, alterados, seus pontos de vista, mas seguros de que estavam diante de uma descoberta arqueológica que lhes traria fama e fortuna, revolucionaria a história da região, e explicaria, talvez, o desaparecimento súbito do povo Ineltepnac. 

Grandes Deuses! A magia negra da deusa da destruição já estava fazendo efeito! Contei tudo à minha tia, que baixou a cabeça, desconsolada. A chegada da deusa Nshtabala significava ruína. Ganância, cupidez, luxúria, violência, alcoolismo, loucura. Os sentimentos mais sórdidos que aprisionamos no fundo de nossa alma afloravam e explodiam, incontroláveis e iracundos, sob a influência dela. 

E eu, eu não era mais dono de mim desde que o raio do luar me atingira. Minha mente consciente não entendia o que estava acontecendo, mas aquele "algo" que não minha persona controlava e guiava minhas ações: fui ao depósito onde minha tia guardava suas magias e preparei um alforje com sal, óleo de olíbano, incenso de sálvia, fósforos. Por mim, teria ficado em meu quarto escondido debaixo das cobertas, mas, como disse, não tinha mais controle sobre meus atos.

Voltei à noite fria, para ler a inscrição na base da estátua. Senti que não teria dificuldades em decifrá-la. 

O vento soprava forte. Soprava uma poeira pedregosa e afiada, que cortava minha pele e arranhava meus olhos. Soprava ameaças veladas, que enregelavam meu coração e me davam ânsias de fugir correndo, aterrorizado. 

A estátua, acreditem, emitia um zunido baixo e constante, como se uma grande colmeia estivesse dentro dela. Aquela coisa estava viva, apenas aguardando para que sua influência nefasta atraísse incautos para adorá-la. E, depois, tudo desapareceria numa nuvem de dor e sangue. 

A inscrição estava em ineltepnacteco pré-tristaniano. O esforço para me concentrar apesar do zunido e do medo me davam ânsias e engulhos.  Ainda assim, eis o que consegui traduzir, grosseiramente, com a ajuda, não duvidem, da entidade dentro de mim: 

Eu sou Nshtabala, a Destruidora. 
Malditos sejam meus inimigos e também meus adoradores. 
Vim do fogo e só ao fogo retornarei,
Se você tiver não tiver o coração forte consumirei sua vida. 

Não tenho coração forte, posso lhes assegurar. Quis fugir dali na mesma hora, mas não consegui. Por falta de opção, fechei os olhos e me entreguei à entidade que me ocupava o corpo e o espírito – que, ao menos, pelo que intuí, era um oponente daquele ser medonho. 

Entoando cânticos cujo significado desconhecia, mas que me vinham naturalmente à boca, cerquei a mim e a estátua num círculo de sal. Untei-nos com óleo de olíbano. Acendi uma fogueira com algodão-sagrado, sálvia e artemísia. O vento parara de soprar.

Acendi um círculo de fogo.
 Sabia, em alguma parte da minha mente, que deveria derreter a estátua.
Só não sabia o que ia acontecer comigo. 

Foi horrendo, quase enlouqueci. Gritos de gente torturada ressoavam em meus ouvidos, senti dentes afiados rasgarem a minha carne e quebrarem meus ossos. Parecia que eu também, assim como a estátua, estava derretendo. A dor era insuportável; eu me contorcia e urrava, pensei que fosse morrer. Aliás, eu queria mesmo morrer para acabar com aquilo. Se me perguntarem como resisti ou porque não saí, terei de responder com o silêncio. Pois não sei com certeza. Acho, apenas, que o oponente de Nshtabala era mais forte que eu. Mais forte que ela.

Apresso-me, agora, pois prometi-lhes contar essa história em somente dois capítulos. A estátua só derreteu inteiramente ao amanhecer, e, talvez por sortilégios de minha tia, ninguém interrompeu meu ritual. Quando tudo terminou, desmaiei e só acordei com o sol a pino. Misturei sal às cinzas e espalhei-os no ar. Nshtabala e seu poder desapareceram. (Pelo menos, naquela forma).

Finalizo esse longo relato. Sou, novamente, dono de mim. Restaram-me algumas sequelas daquela noite incrível: queimaduras, músculos distendidos e pesadelos - que perduraram por bem mais de um ano. O Professor Sondaar-Dief prometeu me denunciar como vândalo, e meu tio ameaçou deserdar-me. Não me importei com um nem com outro. Pela primeira vez na minha existência pacata eu vivenciei uma aventura heroica, cumprindo uma missão sagrada. O que pode haver de mais importante que isso?

Eu agora sabia o que acontecera ao povo Ineltepnac, meu povo ancestral. Detinha um segredo que jamais, nem por toda a glória vã desse insensato mundo eu revelaria. Até porque ninguém iria acreditar.

Foto: Skitterphoto in pixabay

Comentários

Marcio disse…
"Apresso-me, agora, pois prometi-lhes contar essa história em somente dois capítulos."
Eis uma promessa que merecia ser quebrada, sem cerimônia alguma. O argumento estava tão interessante que poderia ser desdobrado em mais capítulos, sem problema algum.
Parabéns pela capacidade de prender a atenção de seus leitores!

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