LA BARCA >> Sergio Geia



O mexicano Roberto Cantoral Garcia, como qualquer artista, imaginou muita coisa boa e deu vida a elas. Como todos nós, porém, é bom que se diga, não imaginou outro tanto de coisa também, algo absolutamente normal. Não imaginou, por exemplo, que um dia seria reconhecido como o autor de uma música eterna (e poucas são as músicas eternas). Não imaginou que muitos casais se tornariam parceiros de vida, graças às boas doses de romantismo encontradas em sua bela La Barca. Não imaginou que a música ganharia o mundo com mais de mil versões (inclusive uma de Caetano). Não imaginou que ainda hoje, em 2017, mais de cinquenta anos depois, fosse existir um quarentão que tivesse um som que toca CD em casa, e que de vez em quando gosta de beber um uísque ouvindo La Barca, sem, também, é bom que se diga, alimentar qualquer sonho romântico, mas pelo simples prazer de ouvir um bolerão.
Aliás, eu tenho esse hábito não apenas com os boleros do Cantoral. É sempre um prazer ouvir música. Céu, Oasis, Chico, Skank (tem um show deles em Ouro Preto que começa num fim de tarde e avança noite adentro que é uma beleza), Bebel Gilberto, Jack Johnson e tantos outros já me fizeram voar em companhia do velho de guerra Jack Daniels. Mas por que, então, La Barca?
Porque La Barca é uma ótima metáfora sobre o amor, e eu aprecio ótimas metáforas. Porque o dedilhado de um violão choroso me entorpece. Mas também porque outro dia eu assistia a um show do Luis Miguel, de 2012, em Viña del Mar, no Chile, e, de repente, ele começou a cantar La Barca e eu senti uma coisa boa.
Foi no Festival de Viña del Mar, que Xuxa se apresentou em 2000 (viveu maus bocados lá, um público exigente, batizado pelos próprios chilenos de El monstruo, que cantou um pedaço do Ilariê mudando a letra, de ô-ô-ô para chu-pa-lo, com evidente conotação sexual), lugar a que, conforme disse na época sua fiel escudeira Marlene Mattos, não retornaria jamais. Mas Luis Miguel retornou (ele já tinha se apresentado em Viña del Mar em 1999), fez um show sofisticado, cantou La Barca e outros boleros, e recebeu, não vaias da plateia, mas gritinhos animados de uma mulherada em êxtase.
Foi quando lembrei que em outros tempos (e bota outros tempos nisso), eu tinha uma fita cassete do Luis Miguel no carro. Era uma fita original, comprada numa loja de discos, bem diferente das dúzias de fitas que tinha e que foram gravadas num três-em-um. Os mais jovens não devem saber o que é um três-em-um (um aparelho de som que tinha rádio, toca-discos e toca-fitas), mas lembro que muitos desses equipamentos me acompanharam em boa parte da juventude. Lembro também que ficava horas ouvindo rádio para gravar uma ou outra música e assim criar minha playlist em simplórios cassetes.
Naquela época, pelo menos pra mim, era muito caro comprar o disco (no caso, fita) de todos os artistas que eu curtia, sem contar que era uma diversão ficar ouvindo rádio com o gravador preparado pra fisgar essa ou aquela música. Mas eu tinha uma original do Luis Miguel, que, depois veio a sumir. Não sei se alguém levou ou se foi emprestada.
Muitos anos depois eu adquiri o mesmo álbum, agora em CD, com as mesmas músicas do show de Viña del Mar, que às vezes me faz companhia ao lado do Jack, e que também serviu pra criar um clima outro dia aqui em casa, num jantar que eu esperava fosse romântico, mas que infelizmente não foi, sem contar que o CD não durou nem três minutos no som, considerado brega e velho pela minha parceira da época. 

Ilustração: Javi GJ “El atardecer y la barca
www. flickr.com/photos/pajavi/26655773252

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