POR UM POUCO DE PÃO E LEITE - parte 2 >> Zoraya Cesar





A fada sereia e seu pássaro de poder andaram por toda a aldeia a esperar as oferendas que lhes eram devidas. Em todas foram ignorados. Quase mortos de fome, chegaram à última casa. A mais rica. E a mais perigosa. Aqui a parte um. 


Apertou a ave moribunda contra o peito murcho e esperou – não tinha forças nem tempo para fugir: a mulher chegara ao portão.

Era velha, velha, velha, o rosto sulcado por rugas fundas e infinitas que contavam a história de uma vida, de várias vidas. Os olhos estriados de vermelho não tinham cílios, seu cabelo era ralo e seus dentes – alguns nascidos no céu da boca – estavam cobertos de limo escuro e grosso. As unhas tinham a cor cianótica dos afogados, contrastando com sua pele moura. Toda ela tresandava a exaustão, cansaço e putrefação de uma vida longa, muito longa, longa demais.

- O que querem? – sua voz era cavernosa e agourenta.

A entidade do lago revolveu a memória para lembrar a saudação correta.

- Que a Deusa Tríplice lhe seja favorável em todas as suas faces, boa senhora.

A entidade esperava mais um rechaço. Se onde o repouso e o alimento lhe eram devidos, ela nada recebera, imagina ali, na casa de uma bruxa anciã, conhecidas por espancar e devorar fadas sereias que invadissem seus domínios.

Supreendentemente, a mulher abriu a porta. Pela lei, a Meah-Yara não podia recusar o convite. Se ao menos, pensou, ela salvasse meu companheiro, bruxas amavam animais.

Não houve, no entanto, violência. A velha preparou uma mesa farta de mingau, leite, pão de centeio, geleia de mirtilo, manteiga. A fada sereia tremia. Há quanto tempo não via tanta fartura a seu dispor! Comeu, tranquila. Agora que entrara, estava protegida. Era contra as leis da hospitalidade maltratar um convidado. Enquanto isso, a bruxa dava uma beberagem fumegante cheirando a azeda para o pássaro.  

À medida em que eram alimentados, a Meah-Yara e a ave voltavam à sua forma original, recuperando as forças e os poderes.

- Você sabe quem eu sou.

- Sim. Uma fada que fez favores demais aos fazendeiros e esqueceu de cobrar sua dívida; que deixou seu animal de poder enfraquecer, como uma estúpida fadazinha do brejo. Uma sereia que não cumpriu sua meta de afogar pessoas más. Uma Meah-Yara banida por sua espécie e decaída até que receba uma oferenda e cumpra sua missão.

A entidade olhou em volta. Plantas venenosas, camundongos, ervas, gansos...

- Curandeira?

A velha riu, uma lufada de pó e sal saindo das profundezas de sua garganta, um cheiro de tumba vindo de suas entranhas.

- Já fui tudo. Fiz coisas boas, coisas más. Já matei e já curei. Escapei do fogo e do ferro. Até cair num feitiço, me perder do meu clã e ficar presa na roda da vida eterna. Estou aqui há mais tempo do que você foi criada e provavelmente estarei aqui quando você não mais existir. A vida eterna na dimensão corpórea é uma maldição terrível que eu não posso quebrar.

A Meah-Yara entendeu. Aquela bruxa envelheceria lenta e inexoravelmente até o final do mundo, cada vez mais pútrida, até desintegrar em corpo, mas sua essência continuaria acorrentada naquele espaço-tempo.

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As estrelas piscaram, sonolentas. A velha levantou, pegou um bule em formato de caveira e serviu à

hóspede um chá de olíbano e verbena.

- Beba. Seu poder voltará por inteiro. Lembre-se de cobrar os sinais que deixou pelo caminho, ou se perderá e, dessa vez, não haverá salvação nem volta para casa.

A entidade reassumira sua forma, uma mulher longilínea, delicadas escamas recobriam seu corpo, brilhando como prata ao luar; cachos azuis encimavam sua cabeça qual coroa; olhos cor de mel ao sol, compridas unhas douradas, dentes pontiagudos e verdes como esmeraldas. O corvo de asas gigantescas voou para seu ombro, emitindo um crocitar assustador que se espalhou além das montanhas.

- Que Hécate lhe guie em todas as encruzilhadas. Sou-lhe eternamente grata.

-  É minha obrigação ajudar a quem bate à minha porta. Sou uma bruxa.

E se despediu com a saudação das feiticeiras do sol:

– Que seu caminho seja de noites estreladas e sangue dos inimigos. E que as portas do abismo lhe sejam cerradas. Vá em paz.

A entidade partiu, pelo mesmo caminho que viera. A luz violeta da lua iluminava seu corpo, que incandescia levemente, como um fogo fátuo feito de mágica, poder, sedução. E sede de vingança.

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Resgataram todas as marcas que deixaram nas casas que lhes negaram ajuda, trocando-as por horror e destruição.

Formigas cortadeiras invadiram e estraçalharam o que encontravam pelo caminho – comida, animais, pessoas. Uma fuligem espessa cobriu outras casas, sufocando qualquer coisa que respirasse. Gafanhotos

comiam hortas e pequenos animais. Em algumas outras casas carrapatos enormes se grudavam em tudo que tivesse sangue, chupando dolorosamente as criaturas. Aranhas gigantescas arrastavam bebês para suas tocas. Pesadas lacraias caiam dos tetos sobre as cabeças.

Quem conseguia escapar corria sem olhar para trás, largando pertences e parentes.

O caos, a destruição, os gritos, tudo se espalhava em terror pela noite.

O corvo sobrevoava a cena, grasnando ominosamente, enlouquecendo os animais domésticos, que corriam desabalados e furiosos, pisoteando quem estivesse pela frente.

A Meah-Yara caminhava, calma, entoando uma melodia que só os homens ouviam. Uns capengavam, outros se arrastavam, mutilados pelas formigas ou comidos vivos pelos carrapatos, alguns envenenados ululavam de dor pelas picadas das lacraias. Enquanto mulheres, crianças, animais se debatiam, fugiam ou morriam, os homens deixavam tudo ao léu, seguindo a entidade.

Ela os levou até o lago, onde todos mergulharam, um a um, fora de si. O último foi o homem gordo, a barriga ainda sendo devorada por escorpiões.

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E pensar que, para evitar tudo aquilo teria bastado ofertar um pouco de pão e leite à entidade faminta que sempre lhes beneficiara com fartura e boas colheitas.

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O pássaro pousou no ombro da fada sereia bicando suavemente suas orelhas em forma de concha.

- Sim, querido, nossa punição acabou, podemos voltar para casa. Mas, antes, temos uma dívida a pagar.

Em dito isso, começou a rodopiar e a cantar uma canção de morte, enquanto a ave batia fortemente as asas. Formou-se um redemoinho espetacular, que uivava como uma alcateia a caçar.

Depois de muito tempo, o redemoinho desapareceu subitamente, e uma chuva começou a cair, uma chuva de água, pentagramas e guizos.

O pássaro sumiu na floresta, de onde só sairia quando sua companheira o chamasse.

A fada sereia mergulhou no lago, satisfeita. Agradecera ao único ser que nunca lhe pedira nem lhe devia nada, único ser que lhe oferecera alimento. A bruxa, livre da maldição da vida eterna, finalmente morrera. E lhe mandara aquele sinal na chuva. Agora, sim, pensou a entidade, missão cumprida, era a hora de devorar algumas almas.

Nos vemos na próxima lua violeta, aldeões!

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maighdeann-mhara - sereia em escocês. A Meah-Yara é um ser mitológico que é parte fada, parte sereia. Tem poderes mágicos fortíssimos, equivalentes aos de uma feiticeira, e também poderes de sedução, capazes de enlouquecer os homens e levá-los à perdição. 

A inimizade das bruxas anciãs e as Meah-Yara vem de longe, de uma guerra que se conflagrou em várias dimensões. A guerra acabou, as hostilidades cessaram e, felizmente, a bruxa anciã aqui relatada era, antes de tudo, uma mulher que respeitava as raízes das tradições de hospitalidade. Mas essa história fica pra depois

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Tá. Lição aprendida. Nunca vou negar um pouco de pão e leite pra ngm. Não quero ser escalpelada por uma víbora cortante albina, nem ter os olhos chegados por um escorpião dourado do Himalaia. Mas vem cá, posso pedir pra entidade esperar no portão?
E assim começa minha manhã de sábado...
Erica disse…
No creo en brujas pero que las hay las hay...
Antonio Fernando disse…
Bom demais. Aqui se fez, aqui se paga. Seja o mal ou o bem. Valeu o ensino, minha bruxa predileta!
Anônimo disse…
Uma senhora lição...
Anônimo disse…
Receber favores de entidades sempre tem um preço, que deverá ser pago! Não existe almoço grátis nesse mundo, nem no espiritual!
Marcio disse…
Quando li a primeira parte do texto, achei que o destaque para o homem gordo indicava que aquele camarada estava no index prohibitorum de Lady Killer.
Pois o camarada voltou a ter destaque nesta segunda parte, com detalhes de seu momento final.
Albir disse…
Se eu distribuir pão e leite no portão todos os dias, tenho alguma chance de não ser comido por carrapatos, formigas, lacraias e escorpiões? E de não ver crianças arrastadas por aranhas gigantescas?
Por que suas velhinhas não fazem tricô, biscoitos nem beijam os netos?

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