Há outro eu vivendo em mim, só que meio estrangeirado, não entendo direito o que o tal diz. Vive encolhido em um canto do mapa do meu pensamento, nos arrabaldes do meu espírito. Houve quando desejei conhecê-lo, como se ele fosse aquele artista do qual se gosta tanto, mas tanto, que existe o desejo pungente de encontrá-lo pela manhã e pedir para que confesse seus sonhos, assim, entre um gole de café e uma mordida no croissant.
Meu cárcere é público
uma vitrine de dolências
na qual me reviro até alcançar o avesso
e nem sempre é o meu
Percebe?
Como se percebe um quadro torto
em uma parede torta
trazendo à tona
sentimentos tão tortos quanto o quando
Só que ele fala em dialeto por mim desconhecido, às vezes até berra palavras a ecoarem feito urgências, mas quais? Não é apenas o fato de não me entender com ele, ou entendê-lo, ou ser capaz de olhar em seus olhos e fisgar ajustes, em vez de delegar ao destino o direito de impor ao meu eu forasteiro a solidão. Há mais por trás das nossas máscaras análogas, das nossas mãos enleadas na hora do pânico, da alegria, do contentamento, da mágoa.
Quando laços não só enfeitavam pacotes
mas também garantiam veracidade
aos sentimentos e à bagunça
que se instalavam em almas não precavidas
Almas desencanadas por opção
mas não opção de deus
a Ele não cabe essa culpa
Ou essa graça?
Feito o momento no qual ele me arrebata com perguntas das quais reconheço somente o ritmo interrogativo, não me chegam respostas. Eu sei que o outro eu necessita saber, mas do quê? Como deseja? Será ele capaz de abrir mão do que eu jamais abriria? De fugir do que a mim prende e repreende e subjuga?
Quando os olhares não embarcavam em fragatas
não se escondiam em lamúria
embeveciam-se de uma paz caricata
porque na felicidade a gente exagera mesmo
E nos permitíamos saborear ventanias
E uma delas levantou a saia da certeza
embebedou-a de desjeitos
fartou-a de desafetos
emburrou a inábil dançarina
Disseram que somos mais de um, e mesmo cientes disso, dessa dualidade, buscamos nos tornar exclusivamente um ao nos misturarmos a outra pessoa. Mas se somos mais de um, não poderíamos nos misturar a nós mesmos em busca de nos tornarmos um... inteiro? Porque dois será sempre um par, pede outro tipo de sujeito a se achegar. E por serem dois, complementam-se.
Observe-me com atenção neste cárcere
Curvada feito clave de sol
Sem sol ou janela ou beijo nas faces
Sem noite tranquila de sono
Sou da órbita da clausura e das distâncias
Meus olhos navegam pela paisagem, enquanto o espírito mergulha em si, obcecado por reconhecer seus cômodos e incômodos. A canção interior, entoada pelo outro eu, é lenta e melancólica, incompreensível em palavras, eficaz no escancarar com o sentimento. Sinto-me feliz de felicidade gritante. Sinto-me triste de profundeza abismal. A voz do tempo me segreda: um dia os sentimentos se misturarão. Então, poderei compreender a linguagem do outro que vive em mim. Saberei como escutar e o que dizer.
Até lá, resta-me contemplá-lo.
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Este texto faz parte do Crônica de um ontem e foi publicado originalmente em 28/5/14.
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