LUZ DE VENENO >> Sergio Geia

 


Eu comia apressado um sanduíche na frente da tevê quando deu a notícia. Era 1987, tinha 18 anos, trabalhava de dia e fazia faculdade de noite. Com vida sem internet, eram os jornais impressos, o rádio e a tevê que nos abasteciam com o que acontecia no mundo. A lembrança que tenho da tragédia é vaga. 
 
Um aparelho usado em radioterapias foi encontrado por dois catadores de sucata, Roberto dos Santos Alves e Wagner Mota Pereira, dentro de uma clínica abandonada no centro de Goiânia, em 13 de setembro de 1987. Roberto e Wagner então decidem vender o material para Devair, um dono de ferro-velho, iniciando-se assim o fluxo da contaminação. 
 
Naquela noite, enquanto fumava seu cigarro no pátio da oficina, Devair foi surpreendido por uma luz estranha vinda do material recém-comprado, uma luminescência azul como de uma estrela ou do fundo do mar. Era uma espécie de sal de cozinha que emitia um brilho azulado. Encantado com o efeito, Devair resolveu fazer com o pó um anel bonito para dar de presente pra mulher. Também distribuiu a amigos, parentes e vizinhos. O compadre Marcio atirou a porção ganha no curral dos animais; Ernesto deu os grãos de presente à esposa; seu irmão Ivo levou para a filha brincar, a pequena Leide da Neves. 
 
Na história, o bairro inteiro foi esvaziado, tiveram de desocupar casas sem nada levar, deixando para trás além da memória, coisas simples como fotografias e objetos de valor sentimental. As casas foram demolidas, muitos dos moradores sofreram discriminação, como o homem que foi expulso de um ônibus como se fosse aranha peluda ou um rato morfético. Morreram 104 pessoas, incluindo os catadores Roberto e Wagner, o dono do ferro-velho Devair e sua esposa, o irmão Ivo, e a pequena Leide das Neves, além de mais de 1.600 pessoas contaminadas. 
 
Se você tem interesse em saber mais sobre esse acidente ocorrido em Goiânia, em 1987, basta usar o Google. Agora se você quiser entrar numa espécie de máquina do tempo e entender mesmo o que aconteceu, estando lado a lado com os catadores, com Devair e outros personagens daquela tragédia, você tem um outro caminho. 
 
Eu falo do livro de contos Vocês brilham no escuro, da escritora boliviana Liliana Colanzi, tradução de Bruno Cobalchini Mattos, que saiu em 2023 pela Mundaréu, e especialmente do conto Vocês brilham no escuro
 
Embora baseado na tragédia, o conto é ficcional, e dimensiona não só a gravidade do que aconteceu lá, mas o dia a dia daquelas pessoas comuns, as relações, a vida cotidiana, as emoções, humanizando a notícia fria, coisa que uma mente juvenil daquele 1987 não conseguiu fazer. 
 
O livro tem outros contos que merecem ser lidos. A dívida, Os olhos mais verdes e O caminho estreito, os meus preferidos. Você encontra resenhas no Jornal Rascunho e na Página Cinco, portal de literatura do UOL. 
 
 
P.S.: 1. Alguns trechos foram retirados do conto citado; 2. Ilustração: Pixabay e arquivo pessoal. 
 
 

 

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Nem lembrava mais do caso. Vc lembrou brilhantemente. E ainda deu uma ótima dica de leitura!
sergio geia disse…
Zoraya, querida, o conto da Liliana me trouxe de novo essa história. Beijo grande!
Jander Minesso disse…
Eu lembro de assistir à reportagem quando era pequeno. Passei meses apavorado e distante de qualquer coisa que emanasse qualquer brilho que fosse. Obrigado pela indicação, Sergio.
Sylvia Testa Braga disse…
OBRIGADA SERGIO, POR ESSA LEITURA.
SUAS CRONICAS ME FAZEM MUITO BEM. QUERO LER TUDO.
QUERO ABSORVER CADA PALAVRA MUITO BEM COLOCADA.
PARABENS MEU QUERIDO. DEUS TE PRESENTEOU COM ESSA FACILIDADE DE ATRAVES?DE UMA SITUACAO QUALQUER ESCREVER UMA CRONICA .
PARABENS QUERIDO!
SYLVIA TESTA BRAGA. 👏👏👏👏👏👏🥰🥰🥰❤️❤️
Soraya Jordão disse…
È muito interessante quando a crônica traz para o presente, um momento esquecido no passado. O triste ocorrido se deu no dia do meu aniversário de 19 anos.

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