TRAÍRA >> JANDER MINESSO

 

– “Em verdade, vos digo: um de vós me há de trair.”

– “Porventura serei eu, Senhor?”

– “Tu o declaraste, Judas.”

– Beleza: até aqui eu decorei. E depois?

– Depois é comigo: vou dividir o pão e o vinho, aproveito pra dar uma dura no Pedro e pronto.

– E no outro dia?

– Você chega com os soldados, me dá um beijo no rosto e sai de perto.

– Tô achando isso bem estranho…

– Vai amarelar agora?

– É que a cena não tá verdadeira, Jê. O que é que me motiva nela?

– Vou explicar de novo: meu pai pediu para você fazer esse favor. Sei que é complicado, mas preciso de um entregueta no grupo ou não tem ressurreição e aí meu trabalho vai todo para o buraco. Papai garantiu que você vai ter uma recompensa legal assim q…

– Tô falando do meu personagem. Tá falso. Parece que eu te dedurei pros romanos por falta do que fazer. “Nossa, que dia chato. Acho que vou entregar Jesus pros homi para passar o tempo.” Eu fiz Wolf, Jê. Sem fé cênica, não vai rolar.

– E se a gente falar que foi por dinheiro?

– Já melhora. Até porque eu tô na pindaíba, mesmo.

– Quanto ofereceram pela minha cabeça?

– Trinta moedas de prata.

– Só?

– Falaram vinte, mas eu valorizei teu passe.

– Melhor trinta do que nada. Avisa o Mateus, o Marcos, o Lucas e o João. Manda eles botarem essa história das trinta moedas no texto, por favor.

– Fala você. Com aqueles quatro, eu não quero mais conversa.

– Aconteceu alguma coisa?

– Os caras não param de pegar no meu pé. Dizem que eu virei estrelinha, que você só quer falar comigo, que roteirista nunca é valorizado… um saco.

– Só me faltava essa.

– Para piorar, já escreveram um monte de baboseira a meu respeito. No primeiro esboço, eu era vítima do sistema. Agora, virei traíra, interesseiro, duas caras… Os quatro estão fazendo a minha caveira, viu?

– Mas o seu personagem tem um pouco dessa energia, não tem?

– E não sei se te falaram, mas os quatro brigaram feio e cada um tá escrevendo um texto diferente.

– Ah, não.

– Pois é.

– Não dá para pedir nada, né? Quantas vezes eu falei para entregarem uma versão só? Como é que eu vou chegar no Mel Gibson com quatro roteiros diferentes?

– E isso já tá certo? É o Mel que vai filmar?

– Só daqui uns dois mil anos, mas vai ser ele.

– E quem vai fazer meu papel?

– Vou pedir um ator bem bacana.

– Quero o Brad Pitt. Ou o Banderas.

– Prometo tentar.

– Assim é fácil, né? O bonito morre como o grande herói da história, tira uma soneca de três dias e volta todo pimpão. Enquanto isso, o bocó aqui vai amargurar a Eternidade como “o cara que caguetou Jesus.” E ainda corro o risco de ter o Nicholas Cage fazendo meu papel.

– Tá bom. Eu dou um jeito.

– Brad Pitt?

– Ou Banderas.

– Jura?

– Juro.

– Por Deus?

Imagem: Pixabay

Comentários

sergio geia disse…
Jander, você é bom nisso. Hum, adorei os bastidores, acho que você tava lá. Participou do roteiro? rsrs
Cleber disse…
kkkkkkkkk
A cereja do bolo é o clássico “Por Deus?” no final. 😂
Fico pensando o que Luca Lionello está pensando ao ler o texto…
Ana Raja disse…
Como eu gosto dos seus textos. Olha, eu tô achando que esse roteiro é seu e vai fazer sucesso!
Zoraya Cesar disse…
Amei o final. Até pq Judas traiu Jesus e seu papel nao foi entregue nem pro Brad nem pro Banderas. Bem feito.
Anônimo disse…
Graças a Deus, temos um iconoclasta dos bons no grupo. Ótimo texto. Ah! O sobrinho do Coppola não é tão ruim ator como dizem. André Ferrer aqui.
Soraya Jordão disse…
Divertido, irônico, leve. Adorei!

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