DESOPILAÇÃO >>> NÁDIA COLDEBELLA


Da conversa ela ouviu "cansei de você" e ouviu também "tô decepcionado" e ouviu ainda "você me magoou quando eu vi sua cara porque eu vi o que você pensava" e da conversa ela só sentiu raiva e sentiu o desprezo dele e sentiu medo e ficou chocada quando ele adivinhou os pensamentos que ela nem sabia que tinha e porque não foi isso que pensou mas "não adiantava conversar" ela pensou quando percebeu que romantizou a queixa achando que tinha servido de tela para ele pintar a dor que sentia quando na verdade tinha servido de latrina para ele despejar o lixo emocional nada reciclável ou aproveitável que tinha se juntado em tanto tempo e que era cheio de pontas cortantes que fizeram bem sua função quando dilaceraram seu coração e ela só tinha vontade de abandonar tudo e ir embora mas o medo e o senso de responsabilidade a impediam porque havia um luto e a dor dele no meio e ela tinha a filosofia de que uma emoção nunca deve ser um filtro para uma decisão se bem que naquela hora ela havia ligado o botão do foda-se mas não queria falar palavrão mesmo com vontade que era para não piorar a situação pois as palavras agora acendiam uma fogueira e era melhor ficar calada esperando por enquanto e implodindo só que houve um momento em que ela não conseguiu e disse "é melhor se afastar" e disse também "você dorme lá e eu durmo aqui" e disse ainda que "você só volta de dia porque eu preciso"  e "nada de contato porque vamos manter uma distância segura" porque ela queria praticar a política da boa vizinhança sem hostilidade e "olha as crianças" e "vamos tentar um equilíbrio" e  nos primeiros dias ele concordou porque era conveniente e ninguém pegava no pé mas ele saia perdendo porque ficava sem o conforto da escrava do lar e ele era instável e ambivalente e agiu como se nada tivesse acontecido mas isso não afetou a decisão dela que estava tomada e aguardando o tempo certo e enquanto isso ela era egocêntrica e fazia uma escada do sofrimento  que era intenso e que poderia ser espremido mas não poderia ser expresso porque ela tinha a sensação de que quem ouvisse não entenderia e ela não queria ser julgada porque ela se sentia muito só e não confiava em mais em ninguém. Só no papel.


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Carla Dias, obrigada pela palavra nova no meu vocabulário.

Comentários

Jander Minesso disse…
“Falta de ar” define. Sufocante e dolorido, mas muito bem construído.
Soraya Jordão disse…
Me fez sentir a angústia avassaladora daquilo que insiste em continuar, ainda que a realidade suplique o libertaDOR, FIM!
Ana Raja disse…
As cenas que as suas palavras revelam, é de uma dor imensa.
Zoraya Cesar disse…
"romantizou a queixa achando que tinha servido de tela para ele pintar a dor que sentia quando na verdade tinha servido de latrina para ele despejar o lixo emocional" Se todo o texto nao fosse de uma dor imensa, só essa frase já resumiria tudo. Dizem que essa é uma dor indescritível. Pois vc, com sua sensibilidade e talento, descreveu-a com tanta perfeiçao que, quem já passou por isso se viu retratado aqui; quem nunca passou já sabe exatamente como é.
Nadia Coldebella disse…
Grata pelos comentários, coleguinhas!
Albir disse…
Beleza de texto, sufocantemente original.

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