CRIATURAS >> Carla Dias


É hora de falarmos sobre como o tempo anda curto, mesmo o relógio contradizendo a informação, insistindo que anda mais preciso do que nunca. É coisa de fim determinado, de daqui a pouco de frescor que durará cinco minutos apurados por esse medidor de existência, horários comerciais e de descanso, e de muito do já não conseguimos mais compreender, porque escasseou de importância.

Contabilidade sazonal: quantos horrores foram encarados no último ano? Quantas noites foram gastas a navegar em melancolia? Quantas vozes não disseram o que morava no desejo? Quantos sorrisos foram coletados pela memória? Quanto amor foi concebido no desvio da determinação de não mais permitir ter o coração partido? Quantos gritos? Quantos medos? Quantos desesperos? Quantos deslumbramentos?

Somos esses indivíduos conflitantes, que hoje pensam isso e amanhã requentam o aquilo. Instáveis, adoráveis, desprezíveis, transgressoras criaturas.

No nosso corpo moram necessidades, na nossa mente vivem questionamentos, no nosso espírito culminam pequenos temporais. Temos de nos agarrar a nós mesmos, diariamente. Precisamos nos esconder de nós mesmos, vez em sempre. Carecemos de nos lamentarmos pelo outro, em nome do alívio de não sermos nós os personagens daqueles devassos desencantamentos.

Voláteis, distraídas consigo, acostumadas a delegar ao tempo o desespero a lhes roer a tranquilidade. Divinas, vez em quando se entregam à generosidade e chegam mesmo a distribuí-la. Criaturas de flores nos cabelos, corpo adormecido por medo, o desejo gritando saudade.

Há dias em que somos criaturas de tantas identidades.

Não há culpa que pertença ao tempo. Ela é nossa, somos nós que o gastamos com insignificâncias; que o tratamos como moeda; que despimos sua necessidade de cadenciar, ao tentarmos fazer caber nele um tudo que nele não cabe.

Ah, nós, entes perturbadores, intrigados com o que não podemos controlar. Rebelados ao sentirmos irrefreável necessidade de nos firmarmos como soberanas. Criaturas que somos a nos rastejarmos pelos cantos sombrios de nós mesmas, para então desaguarmos em alegrias febris.

Não é o tempo que passa mais depressa, é a nossa pressa que o atropela. É a nossa urgência que o devora.

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Este texto faz parte do Crônica de um ontem, e foi publicado originalmente em 5 de dezembro de 2019.
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Comentários

Ana Raja disse…
Menina de belas palavras!
"Somos esses indivíduos conflitantes,que hoje pensam isso e amanhã requentam o aquilo". Perfeito!
Soraya Jordão disse…
Em cada linha, um encontro. Linda crônica.
Jander Minesso disse…
No fundo, acho que o que mais me assusta no Tempo é que ele passa sempre na mesma cadência. E veja você: cinco anos depois, seu texto continua contemporâneo.

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