SOL SOMBRIO - O HOMEM SEM ROSTO: Parte VI >>> Nádia Coldebella

Era uma grande planície avermelhada e de solo compactado. O sol, impiedoso, secara toda a água e a terra, ferida, rachava em profundas fendas. Apesar disso, o céu parecia eternamente pronto a desabar em intensa chuva, mas nenhuma gota caia. Não havia vento, nem brisa, só mormaço e agonia.

O Anjo Negro pousara há pouco sob o solo craquelado e amaldiçoado. Segurava firmemente o caderno, mas estava nu e elidido de qualquer estratégia. E era assim que devia estar, pois aquele lugar não permitia nenhum tipo de proteção, plano ou segundas intenções. Quem ali se atrevesse a chegar, deveria estar preparado para ser despido, invadido e prescrutado de todas as formas possíveis: sentiria todas as suas sombras arderem ao sol e sua alma racharia em mil partes, para que todos os segredos fossem expostos.

Ele sentiu o calor irradiado pela terra ferir a sola dos pés descalços. Sentiu as vias aéreas arderem sob o cáustico mormaço. Sentiu o sol ardente fustigar-lhe a pele, querendo desfazê-la em mil partes. Mas ele riu - estava sarcástico esses dias - pensando que há muito tinha sido quebrado em milhões de partes e que ainda não sabia como emendar-se. Decidiu ignorar os sentidos e caminhou alguns passos, até aproximar-se de um largo fosso que abria-se naquela imensa mortalha esburacada que era o chão.

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Koh Aang olhou ao redor. Ainda era meio dia e o sol ia alto no céu, mas as nuvens começavam a entalhar o desenho do que logo seria uma tempestade. O vento começara a soprar e as árvores agitavam-se, sinalizando para que decidisse rapidamente.

- Quão fundo um homem pode descer? - Perguntou-se, colocando a cabeça dentro daquele buraco e lembrando que assinara seu nome com sangue no caderno do Anjo Branco. Era mais um, prestes a dissolver-se naqueles olhos ocos e funestos. Só que ele era diferente de tantos outros, não pretendia manter o pacto - Sou eu quem decido! - gritou para dentro daquele fosso como se gritasse com o próprio Albino, jogando-se na escuridão do buraco.

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Morus ergueu as asas e juntou-as, como se fosse uma concha. Colocou-se de costas para o sol e elas lançaram uma sombra que amainou um pouco calor. Abaixou-se e, sem assustar-se com a escuridão, entrou no fosso.

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Koh escorregara por alguns metros, mas logo seus pés tocaram o chão. Ele nada enxergava. Havia trazido uma vela, poderia acendê-la, mas recebera orientações expressas para não levar ao caminho qualquer luz. De qualquer forma, andava ereto, mas lentamente. Apoiava-se firmemente nas paredes do que agora parecia ser um íngreme túnel que descia para o interior da Terra. Logo o túnel estreitou-se e ele precisou curvar-se para não bater com a cabeça na parte superior.

Depois de um tempo, o ar rarefez-se e o calor deixou a respiração ainda mais difícil. Uma forte pressão fez seus ouvidos zumbirem. Ele sentiu a nuca pesar de tal forma que suas pernas bambearam, impelido-o a deitar-se no solo.

- E se tudo cair sobre mim? - Sua respiração acelerou, mas ele não sentiu medo. Apenas sentiu-se flutuar e todo o peso foi embora. O mundo parecia um grande líquido morno que o preenchia em todos os poros, tirando a importância de qualquer coisa que pudesse acontecer. - Quero ficar aqui - pensou, para em seguida levantar a cabeça e ver, a sua frente, a face esbranquiçada do seu algoz.

Da mesma forma que fora impelido ao chão, agora tremulamente erguia-se, decidido a continuar.

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O Negro recolhera as asas, pois o túnel ficava cada vez mais íngreme e estreito. Felizmente, ele podia percorrer o caminho com destreza. Além disso, a escuridão não era um problema e, nas paredes, ele conseguia ver inscrições em muitas línguas antigas, algumas já mortas - gaulês, alano, etrusco, úmbrio, fenício, siríaco, copta, sumeriano, sânscrito, mohave - que aconselhavam, fracassadamente, o caminhante a desistir e retomar à superfície: 

“Cães maus morrem dolorosamente”
"Escolheram lobos para guardar as ovelhas"
"Como você vai andar descalço sobre os espinhos?" 
"O vidro rachado não pode ser consertado"
"A divindade compraz-se em humilhar tudo o que se eleva"
 "Para onde vais tão inutilmente"? 
"Não sabes que quanto mais profundo o rio, menos ruidosa a correnteza?"

Ele curvou-se e depois de alguns metros o túnel estreitara-se a tal ponto que primeiro precisou engatinhar e depois arrastar-se pelo chão.

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Koh Aang rastejava com muita dificuldade, comprimido pelo túnel. A descida terminara e, depois de uma curva, ele percebeu que começara a subir. Subir era mais penoso que descer e as câimbras já tomavam suas pernas e braços. Pensara várias vezes em retornar e até tentara, mas, no ponto em que estava, não conseguia  virar-se para qualquer lado ou alterar sua direção. Precisava ficar de barriga para baixo e só conseguia mover-se para frente.

O caminho agora era cheio de curvas e novas subidas. Ele perdera completamente o sentido do tempo. Não saberia informar se haviam passado horas ou dias e já não saberia dizer qual a sensação do brilho do sol sobre sua pele. Na verdade, nem lembrava-se do sol ou do frio: só conhecia o calor que lhe dilacerava as vísceras, a umidade que deixava sua pele viscosa e o sufocamento que agora começava a tomar conta de seus pulmões.

Outra curva e o homem sentiu novas câimbras, agora no peito. Em prantos, amaldiçoou o anjo branco, amaldiçoou o caderno, o túnel e a si mesmo. Iria morrer ali, entalado naquela maldita veia da terra. Mas não sem lutar. E num último impulso, avançou mais um pouco e sentiu sua cabeça libertar-se, como num parto, em um enorme vazio. 

Ficou um pouco quieto, para certificar-se que não morrera e de que não fora lançado ao limbo. Logo teve certeza de que encontrara a grande sala. 

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Com bem pouco esforço, Morus conseguiu libertar-se do estreito túnel. Endireitou o corpo e estendeu as asas inquietas. Estava numa sala muito ampla. Elevou-se  alguns metros acima do solo para contemplar melhor o local e não pode deixar de observar que o arquiteto era, antes de tudo, um artista de mãos sobrenaturais, preocupado com a perfeição e coerência de sua obra.

Tratava-se de uma sala oval, sem qualquer adorno. Ela havia sido escavada numa gigantesca pedra negra. Paredes e chão eram muito polidos e refletiam uma luz tênue e levemente esverdeada que provavelmente provinha de alguma fonte de energia interna, uma vez que a sala não tinha ligação alguma com o exterior, a não ser pelo túnel que o levara até ali. O teto abobadado e entalhado diretamente na pedra, em estilo gótico, estendia-se dezenas de metros acima da cabeça do anjo. Em cada extremidade da sala encontrava-se uma espécie de tablado feito da pedra e sobre cada tablado, um um altar também esculpido na rocha original. 

O altar maior localizava-se na extremidade leste da sala e sobre ele encontrava-se um livro descomunal. O anjo percebeu que era dele que provinha a luz esverdeada.  Assombrado, desviou o olhar e virou-se para o o outro altar, bem menor, que encontrava-se na extremidade oeste. Este estava vazio.

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Pela primeira vez, durante uma quantidade de tempo que não pode precisar, Koh Aang sentiu-se relaxado. Ele saíra do túnel com tantas dores  que nem se dera conta do tamanho da sala. Apenas deitara no chão de pedra e dormira. Agora impressionava-se com a imensidão daquele lugar e com a luz sobrenatural que incidia ali.

Percebeu que ela era emanada pelo Grande Livro que estava sobre o  altar no extremo leste da sala. Atraído, quase hipnotizado, caminhou vagarosamente até ele, mas não subiu o tablado. Ao invés disso, virou-se de costas para ele, pois lembrara-se dos conselhos dos Irmãos Na'Omh: Não se desvie, dissera a Mulher Vermelha.

Koh caminhou tão rápido quanto pode até o outro extremo do grande salão. Ali, do lado onde o sol se punha, havia um altar menor e sobre ele o caderno de couro antigo, o mesmo em que escrevera seu nome com sangue.  

Verborum obligattio, verbis tollitur, o anjo branco lera pra ele. Mas as palavras não cancelaram seu contrato. Ele acendeu a vela que trouxera e sacou de um bolso da calça uma pequena navalha, feita de ouro e com inscrições em uma língua que ele desconhecia. Abriu o livro e localizou o seu nome. Faça rapidamente, a Mulher Cinzenta lhe dissera ao lhe dar a navalha. Ele colocou a lâmina na chama da vela e repetiu as palavras que ela lhe ensinara:

- Ejicio e meo sanguine obligationem verborum* - um breve estampido ecoou em seus ouvidos e seus olhos se abriram: ele percebeu as pesadas algemas que haviam sido colocadas em seu pulso. Com a navalha ainda quente raspou seu nome do livro e, ao finalizar, as algemas caíram. Estava livre do pacto. Rapidamente, fechou o caderno, recolheu a navalha e a vela e dirigiu-se ao túnel.

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O Negro pousou suavemente nas proximidades do altar menor e aproximou-se com cautela. Todo o lugar havia sido feito por mãos mais poderosas que as suas e ele não queria aviltar a serenidade do que estivesse ali. Vasculhou as imediações com os olhos e, encolhida atrás da pedra, em posição fetal, encontrou uma massa disforme que, aos poucos, estendia-se e parecia tomar a forma de um ser humano.

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Koh Aang desenrolou o pergaminho que o Irmão Ajoelhado escrevera. Ele ajoelhara-se em sua cela, orando e jejuando por vários dias, antes de entregá-lo ao homem. Koh deveria ler as palavras ao sair e a grande sala seria irremediavelmente fechada. Seja forte, dissera o Ajoelhado.

Ele, porém, não conseguia olhar para o pergaminho porque seus olhos estavam fixos no Grande Livro. Era como se o livro o chamasse. Ele sabia que era proibido, que não deveria se aproximar. Não abra, dissera a Mulher Cinzenta. Não leia, dissera o Irmão Ajoelhado. Nem os anjos se atrevem, dissera a Mulher Vermelha. Mas nem A Cinzenta, nem O Ajoelhado e nem A Vermelha haviam chegado até ali. Somente ele.

Ele guardou o pergaminho e caminhou em direção ao grande altar. Subiu no tablado e postou-se diante do Livro. Tocou levemente os símbolos dourados da capa descomunal e não lembrou-se de, algum dia, haver tocado algo parecido. Com muita reverência abriu-o e seus olhos foram presos na primeira página. Por um momento, muito rápido, sentiu-se imiscuir-se ao livro: viu éons, mundos e segredos, presente, passado e futuro, ouviu todas as vozes e todos os ensinamentos, aprendeu todos os sons de todas as coisas, sentiu todos os cheiros e descobriu a natureza de tudo o que foi ou seria criado.

Koh Aang sentiu a cabeça crescer e não conseguia conter, em seu cérebro, tanto conhecimento. Em seus ouvidos, sentia o uivo dos temporais, os olhos ardiam em lágrimas ácidas e a garganta explodiria, em qualquer momento, em inefáveis sons. 

Estava louco e assombrado: embora tudo visse e tudo ouvisse, seus olhos não estavam mais lá, seus ouvidos haviam sido retirados, sua boca costurada e o nariz desaparecera. 

Era um homem sem rosto.

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Quando a massa disforme acabou de esticar-se, o Negro deparou-se com um homem que outrora havia sido chamado de Koh Aang. Ele via tudo, mas não tinha olhos. Ele ouvia tudo, mas não tinha ouvidos. Ele sabia tudo mas sua boca havia sido trancada. Para sempre enterrado vivo, era duas vezes amaldiçoado, a primeira porque entregara sua alma, a segunda porque conspurcara O Livro. E ele era a causa da maldição da terra onde estava.

O homem sem rosto estendeu as mãos para o Negro, que entregou o caderno de Hyalin. Elas continuarem estendidas e entregaram ao anjo o pergaminho do Irmão Ajoelhado. 

Se homem sem rosto tivesse boca, teria esboçado um sorriso ao ver a satisfação nos olhos de Morus. 

O homem sem rosto colocou o caderno sobre o altar, abrindo-o na primeira folha. Rapidamente retirou uma vela e uma navalha do bolso, acendeu a vela, esquentou a navalha e começou a raspar cada inscrição já feita naquelas páginas.

Morus encostou-se na parede e permaneceu assim, confundido a ela. Hyalin não tardaria a aparecer.


Não perca a sétima e última parte em 30/06

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*Expulso do meu sangue a obrigação das palavras


Leia as outras partes de Sol Sombrio aqui:

Parte 01: Os irmãos
Parte 02: O ajoelhado
Parte 03: O contrato
Parte 04: A dança da morte
Parte 05: Os mortos não mordem

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Como esse é um blog família, nao vou me expressar com os palavróes de praxe. Mas digo que é uma baita de uma descrição de ambiente e uma baita de uma história que tem de ser transformada em novela. Com ilustração. E o prefácio é meu.
Albir disse…
Solo rachado, túnel apertado, respiração difícil! Quando terei um alívio? Quando chegarei a grama verde, árvores frondosas e ar puro? Tá guardando pro final, né, Condessa? Danadinha!

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