JINGLE BELLS E CALIBRAGEM NATALINA >>> Nádia Coldebella

Desde que Eliseu acertara o dedo podre na escolha da quarta esposa, era pura jovialidade. Suas conquistas amorosas inspiraram o Clóvis, que deixou a peruca de lado e se afundou num tórrido romance com a estagiária. Ser uma reconhecida fonte de inspiração deixava meu chefe e amigo muito feliz.

(Dê o play e curta o clima natalino da história)

Além de inspirador e feliz, Eliseu também se afogava na espontaneidade da quarta esposa, que, aproveitando o mote da época, encheu o teto, mesas e portas da empresa de enfeites natalinos. Também montou um grande pinheiro, bem no meio do escritório, e instalou alto falantes para que as músicas temáticas tocassem oito horas por dia, sem interrupções. Eliseu era puro orgulho.

- Foi a Tchutchuca mesmo quem organizou tudo, Fernandinho.

Confesso que há vinte anos trabalhando com Eliseu, nunca vi nada parecido. Ele sempre fora um homem bastante comedido: preocupava-se em usar rímel para os cabelos não ficarem brancos, alinhava perfeitamente a gravata e se vestia como falava, impecavelmente, sem nunca tirar um “ésse” de qualquer plural. Agora, assumiu a branquitude capilar, usava os dois primeiros botões da camisa abertos e aderiu ao jeans. E derretia-se quando a amada fazia seus biquinhos apaixonados, chamando o paizinho.

- O que mais um homem pode querer, Fernandinho?

Clima natalino exagerado ou não, o fato é que meus colegas logo embarcaram na novidade do Merry Christmas. Jingle Bells e Noite Feliz rapidamente começaram a ser entoadas na privacidade do santuário do pensamento, o banheiro. Voltar do cafezinho exigia uma passadinha perto da árvore de natal para observar melhor os enfeites cheios de fru-fru. Sorrisos enfeitavam as caras dos colegas e um clima alegre poderia ser encontrado, permanentemente, das oito às dezoito, horário comercial.


Todo mundo parecia estar à vontade. Todos, exceto  Arivonil, que remexia-se na cadeira desde que a Tchutchuca colocara um pinguim com gorro vermelho para enfeitar sua mesa.

Arivonil era um funcionário peculiar, que trabalhava muito bem quando tinha instruções claras sobre como proceder. Caso contrário, tudo poderia virar um desastre. Mas Eliseu via tudo com bons olhos.

- Se você calibrar o Arivonil direitinho, Fernandinho, o cara é uma máquina!

Eu mesmo já tive a oportunidade de ver em que a falta dessa calibragem adequada pode resultar. O meu colega, num happy hour, incentivado pela bebida e pelo fanfarrão do Manfrei, chegou na moça, que toda sorridente e também pra lá de Bagdá, parecia interessada.

- Oi, Gata! Eu sou Arivonil - Ele disse, seguindo exatamente a orientação do Manfrei, que fazia um sinal de positivo, para informar ao prudente conquistador que ele estava fazendo tudo certo. Ele empoderou o menino. - Meu nome é estranho mesmo, então pode me chamar de amor. - Manfrei torceu o nariz, mas a moça riu. Com dois sinais tão antagônicos, Arivonil ficou confuso. -  É… - Arivonil deu um olhar de revesgueio para Manfrei, que ergueu um papel e apontou com o indicador para as orientações que tinha desenhado a pouco - É… - A moça olhava  ansiosa com grandes olhos torpes, esperando a revelação do príncipe encantado - Pode não ter ninguém interessado em você, gata, mas eu até que consigo achar você legalzinha.

Posso adiantar que a coisa não funcionou por um motivo muito simples: Arivonil não compreendia protocolos, a não ser que estivessem descritos, detalhadamente, em passos, numa prancheta com espaço na última coluna para ele dar um ok assim que tivesse cumprido cada etapa. 

Porém, para minha surpresa, depois de alguns dias de instalação dos enfeites, a inquietude de Arivonil se reduziu a uma leve ansiedade. Ele logo descobriu que se desse um sorriso e cantasse Jingle Bells em qualquer tempo, as possíveis situações vexatórias seriam facilmente amenizadas.

Mas tudo piorou consideravelmente quando Eliseu, logo pela manhã, enganchado na Tchutchuca, anunciou a festa natalina nas dependências do escritório. Arivonil, além de se mexer bastante na cadeira, passou a fazer um barulho esquisito com a boca, um tilac-tilac-tilac, que logo foi notado por um preocupado Eliseu.

- O cara está surtando, Fernandinho.

O que Eliseu não sabia é que eu também estava surtando, porque o Arivonil trabalhava ao meu lado. Assim, não pude me conter e, educadamente, pedi para que ele se contivesse. Mas ele não se conteve.

- Os protocolos, tilac, Dr. Fernando, os protocolos, tilac. - O pobre homem ia explodir de ansiedade - Não sei o que fazer. - mais tilacs - Nunca fui a uma festa da empresa…

Certo, tratava-se de um problema de calibragem. Eu não podia fazer muito por ele, porque nunca havia acontecido festa na empresa, então sugeri que ele fosse conversar com Eliseu. E ele foi, imediatamente, com prancheta e caneta na mão. E eu o segui, sorrateiramente, e parei na soleira da porta. Eliseu me viu, mas fiz um sinal para que ele ficasse quieto. Se precisasse, eu estaria ali para acudir meu chefe. 

Arivonil esqueceu completamente o protocolo do bom dia e soltou:

- Dr. Eliseu, tilac, o senhor conhece meu problema com protocolos, tilac? - Meu amigo disse um bom dia, Arivonil, meio seco e balançou a cabeça afirmativamente, indicando ter conhecimento do assunto. Arivonil respirou fundo. - Então vou ser direto. Tilac. No dia da festa, como eu faço? Tilac, tilac. Que roupa eu visto? Que assuntos eu devo conversar? Tilac. Se eu for falar com o senhor, deve ser ou não na presença da Tchutchuca? Tilac, tilac… -  E muitos outros tilacs, quando Eliseu levantou a sobrancelha levemente irritado ao ouvir a menção do apelidinho carinhoso que dera a amada - Prefere que eu não fale com o senhor? Tilac, tilac, tilac…

Nesta altura, Eliseu contemplava um Arivonil de boca seca e olhos saltados, tentando conter inúmeros, incontroláveis e atropelados tilacs. Ele parecia um grande ponto de interrogação, trêmulo com a caneta na mão, esperando o passo a passo do chefe, esperançoso com a oportunidade de dar um tick na sua prancheta. Mas Eliseu estava exasperado e eu já pensava em interromper, quando meu chefe, senhor de si e ignorando completamente a necessidade de calibragem do funcionário, soltou:

- Seja espontâneo, Arivonil! Surpreenda-me!

Confesso que fui eu quem ficou surpreso com a atitude de Eliseu, ele nunca havia exibido este nível de crueldade antes. O pobre Arivonil voltou a sua baia e manteve os mesmos olhos estalados que haviam sido contemplados pelo chefe a pouco. Os tilacs já não pareciam tiques, mas galopes de cavalo. Ele se remexia na cadeira a tal ponto que, por duas vezes, eu, sempre pacífico e paciente, gritei "Cuidado! Você vai cair!" Quando os tilacs evoluíram para soluços, Arivonil começou a parecer uma campainha, sem concentração nenhuma para o trabalho.

Incomodado consigo mesmo, pediu para sair mais cedo e no dia seguinte, sexta-feira, não compareceu. Ao final do dia, Eliseu veio à minha mesa, com um forte olhar de culpa.

- Se ele não vier segunda, Eliseu, vou ver o que aconteceu. Eu posso ter infartado o homem, Fernandinho.

Mas, na segunda, Arivonil chegou sereno e disposto, a verdadeira cara da calma. Falava pausadamente como sempre, enquanto carregava sua prancheta para saber qual o protocolo do momento. Os tilacs também haviam sumido.

- Ah, Dr, Fernando! Eu quase morri esse fim de semana, mas depois de entoar vários Jingle Bells, entendi o conselho do Dr Eliseu. Já sei o que fazer.

E Arivonil passou a semana muito bem, obrigado, concentrado no passo-a-passo do trabalho. Não se abalou nem quando a Tchutchuca inventou o amigo secreto, que, protocolarmente, não deveria ser revelado a ninguém até a data combinada.

- Adivinha quem é meu amigo secreto, Dr. Fernando? O chefe! E eu sei o que fazer.

Na sexta-feira, data da tão esperada festa natalina, Eliseu liberou a galera mais cedo. Às dezenove horas, todo mundo já havia chegado, menos Arivonil. Eliseu não pareceu notar, mas depois da revelação do amigo secreto, ele afastou-se e encostou-se numa parede, desacorçoado e sem presente, contemplando meditativamente o Manfrei que, tendo bebido em excesso, já arrancara os sapatos e a camisa e dançava, de forma muito suspeita, sobre a mesa, ao som de Village People.


Cheguei perto e dei três tapinhas nas costas do meu amigo, meio que para consolar, meio que para desejar Feliz Natal.

- É Fernandinho… Acabei de receber uma mensagem do Arivonil. - Eliseu deu uma suspirada - Ele me desejou Feliz Natal. Ele me perguntou se as minhas expectativas tinham sido atendidas... - Outro suspiro. O Arivonil não veio de propósito, achando que estava seguindo o protocolo - Dessa vez me superei, Fernandinho. Acho que calibrei bem o Arivonil. O cara realmente me surpreendeu.

É verdade o que disse Eliseu. Desse dia em diante, Arivonil derramou-se  em gafes protocolares, crente que havia pegado o espírito da coisa. Até abandonava a prancheta de vez em quando. Eliseu tinha criado um monstro.





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Esse texto faz parte da série "Crônicas de Fernandinho". Leia as outras cronicas da série aqui:

Casamentos e Cacatuas - Uma historia casamenteira sobre um chefe dedo-podre com mulheres.

Uma questão capilar - Questões capilares podem ser superadas para que o verdadeiro amor floreça?.




Comentários

Anônimo disse…
No final das contas Arivonil fugiu daquilo que mais teme: imprevisibilidade.
Adorei o conto Nádia, parabéns!
Zoraya Cesar disse…
"olhar de revesgueio"... OLHAR DE REVESGUEIOOOOOOOOOO

sensacional

Countess, ri tanto, mas tantoooo com essa sua história q nao sei como vc nao ouviu minhas gargalhadas daí de onde vc tá!

Obrigada hahahahah
Albir disse…
Que beleza, Nádia!
Estou rindo até agora, sempre que penso no Arivonil.
Paulo Barguil disse…
Nádia, uma ótima história para nos inspirar no ano que se inicia. Que ele seja novo! ;-)

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