SOBREPOSTOS >>> Nádia Coldebella

O guardião viu a jovem de traços delicados sentar-se no gramado da casa de campo e encontrar a noite, silenciosa e fresca, à sua espera. No céu, a lua cheia desfilava para uma plateia de milhares de estrelas cintilantes, que, sem as luzes da cidade, podiam contrastar a vontade com o negrume da noite. A moça estendeu as pernas brancas e bem proporcionadas sobre a grama. Seus braços agora eram como duas colunas de marfim que sustentavam um tronco e uma cabeça obstinada, projetada para o alto. Ela olhava diretamente para um ponto sobre si e, para isso, envergava-se de tal forma que os seios transmutaram-se em protuberâncias misteriosas, querendo revelar-se sob o tecido leve da roupa. Os cabelos pretos e longos contornavam-na como um véu que caía sobre a grama úmida de orvalho. Os seus olhos brilhavam e a boca carnuda estava levemente entreaberta e úmida. Ela parecia em êxtase, perscrutando assim, tão entregue, o inexorável céu sobre sua cabeça. 

Uma onda de eletricidade percorreu o corpo de Gerrah'Ag, eriçando os pelos de sua nuca. Ela era uma visão magnífica e ele sentia-se completamente perturbado. Na verdade, estava perturbado há meses, desde que a vira na rua. A delicadeza dos movimentos, o andar ereto e elegante, a pele pálida e os longos cabelos negros o impressionaram, mas foi o movimento controlado de suas mãos com longos e finos dedos que despertaram nele as memórias de um tempo muito antigo, vividos em um carvalho que havia sido também sua casa. “Daraich”, ele havia pensado e nesta hora ela também o viu e ele sentiu que o olhar dela o transpassava, como sempre havia sido e ela… Ela havia esquecido de tudo, de toda a existência vivida neste continuum que os humanos chamam de vida e morte.  Ele deu-lhe rapidamente as costas, mas era tarde. A existência dela já havia tomado conta da sua. Passou alguns dias andando a esmo, procurando não pensar, embora ela estivesse presente em seus pensamentos noite e dia.  

Os guardiões sabem ver o mundo como ele realmente é e por isso mesmo Gerrah'Ag não alimentava qualquer ilusão de que iria esquecê-la. Precisava vê-la e, tornando-se invisível aos olhos humanos, a procurou, até encontrá-la ali, no gramado.

-Ângela! - uma voz masculina a chamava. A jovem baixou a cabeça, arrancada que foi de seus devaneios. Levantou-se vagarosamente - cada movimento seu um chamado para que o guardião a tomasse nos braços. De pé, a moça arrumou o vestido, tirando os ciscos de grama que haviam grudado nele. Começou a andar lentamente em direção a casa. À porta, um homem moreno, não tão elegante, a olhava com devoção apaixonada. Gerrah'Ag agitou-se e um sentimento desagradável borbulhou em seu peito. 

Repentinamente Ângela parou. Ela virou-se e seus olhos negros voltaram-se diretamente para ele. E ficaram ali, enormes, fitando o que para ela era um espaço vazio - mas não para Gerrah'Ag que sabia que aqueles olhos mergulhavam diretamente nos seus. Ele ficou mais imóvel ainda, mas não podia conter os fortes batimentos do seu coração. Ela logo voltou a  movimentar-se para, segundos depois, entregar-se ao abraço do homem moreno que a esperava na porta.

Quando ela entrou, Gerrah'Ag ajoelhou-se no chão e lágrimas grossas rolaram por sua face. Ele cobriu-se com as negras asas, na tentativa de se fechar em um casulo e aplacar a dor que sentia. Mas o efeito foi o oposto. Um choro profundo e abafado há quase um milênio eclodiu e ele, instintivamente, curvou-se até o solo com a mão sobre o peito. 

Daraich não existia mais. Esta mulher a sua frente não sabia quem era e ele, como um guardião, sabia como as coisas funcionavam. Sem ser reconhecido, ele nunca poderia ficar. E com ela em seus pensamentos, ele nunca poderia continuar.  

Suprimindo o choro, pôs-se de pé. Estendeu as letais e negras asas até sentir seu peito rasgar-se. Então, colocou a mão dentro da ferida que se formara e, com cuidado, retirou o próprio coração, que ainda pulsava. Com ele entre as duas mãos, olhou para o alto, para o ponto que antes Ângela olhara e, tomando impulso, voou, como um raio, em direção a ele. 

O guardião viu a jovem de traços delicados sentar-se no gramado da casa de campo e encontrar a noite, silenciosa e fresca, à sua espera. No céu, a lua cheia desfilava para uma plateia de milhares de estrelas cintilantes, que, sem as luzes da cidade, podiam contrastar a vontade com o negrume da noite. A moça estendeu as pernas brancas e bem proporcionadas sobre a grama. Seus braços agora eram como duas colunas de marfim que sustentavam um tronco e uma cabeça obstinada, projetada para o alto. Ela olhava diretamente para um ponto sobre si e, para isso, envergava-se de tal forma que os seios transmutaram-se em protuberâncias misteriosas, querendo revelar-se sob o tecido leve da roupa. Os cabelos pretos e longos contornavam-na como um véu que caía sobre a grama úmida de orvalho. Os seus olhos brilhavam e a boca carnuda estava levemente entreaberta e úmida. Ela parecia em êxtase, perscrutando assim, tão entregue, o inexorável céu sobre sua cabeça. 

Uma onda de eletricidade percorreu o corpo de Gerrah'Ag, eriçando os pelos de sua nuca. Ela era uma visão magnífica e ele sentia-se completamente perturbado. Na verdade, estava perturbado há meses, desde que a vira na rua. A delicadeza dos movimentos, o andar ereto e elegante, a pele pálida e os longos cabelos negros o impressionaram, mas foi o movimento controlado de suas mãos com longos e finos dedos que despertaram nele as memórias de um tempo muito antigo, vividos em um carvalho que havia sido também sua casa. “Daraich”, ele havia pensado e nesta hora ela também o viu e ele sentiu que o olhar dela o transpassava, como sempre havia sido e ela… Ela havia esquecido de tudo, de toda a existência vivida neste continuum que os humanos chamam de vida e morte.  Ele deu-lhe rapidamente as costas, mas era tarde. A existência dela já havia tomado conta da sua. Passou alguns dias andando a esmo, procurando não pensar, embora ela estivesse presente em seus pensamentos noite e dia.  

Os guardiões sabem ver o mundo como ele realmente é e por isso mesmo Gerrah'Ag não alimentava qualquer ilusão de que iria esquecê-la. Precisava vê-la e, tornando-se invisível aos olhos humanos, a procurou, até encontrá-la ali, no gramado.

-Ângela! - uma voz masculina a chamava. A jovem baixou a cabeça, arrancada que foi de seus devaneios. Levantou-se vagarosamente - cada movimento seu um chamado para que o guardião a tomasse nos braços. De pé, a moça arrumou o vestido, tirando os ciscos de grama que haviam grudado nele. Começou a andar lentamente em direção a casa. À porta, um homem moreno, não tão elegante, a olhava com devoção apaixonada. Gerrah'Ag agitou-se e um sentimento desagradável borbulhou em seu peito. 

Repentinamente Ângela parou. Ela virou-se e seus olhos negros voltaram-se diretamente para ele. E ficaram ali, enormes, fitando o que para ela era um espaço vazio - mas não para Gerrah'Ag que sabia que aqueles olhos mergulhavam diretamente nos seus. Ele ficou mais imóvel ainda, mas não podia conter os fortes batimentos do seu coração. Ela logo voltou a  movimentar-se para, segundos depois, entregar-se ao abraço do homem moreno que a esperava na porta.

Quando ela entrou, Gerrah'Ag ajoelhou-se no chão e lágrimas grossas rolaram por sua face. Ele cobriu-se com as negras asas, na tentativa de se fechar em um casulo e aplacar a dor que sentia. Mas o efeito foi o oposto. Um choro profundo e abafado há quase um milênio eclodiu e ele, instintivamente, curvou-se até o solo com a mão sobre o peito. 

Daraich não existia mais. Esta mulher a sua frente não sabia quem era e ele, como um guardião, sabia como as coisas funcionavam. Sem ser reconhecido, ele nunca poderia ficar. E com ela em seus pensamentos, ele nunca poderia continuar.  

Suprimindo o choro, pôs-se de pé. Estendeu as letais e negras asas até sentir seu peito rasgar-se. Então, colocou a mão dentro da ferida que se formara e, com cuidado, retirou o próprio coração, que ainda pulsava. Com ele entre as duas mãos, olhou para o alto, para o ponto que antes Ângela olhara e, tomando impulso, voou, como um raio, em direção a ele. 


Dentro da casa, a moça sentiu seu coração partir-se. Perdera alguma coisa. Perdera alguma coisa. Voltou ao gramado correndo e olhou para o alto, para a mesma estrela que antes a absorvera tão profundamente. Perdera alguma coisa, repetia para si mesma. 

O pobre e apaixonado homem, que a havia seguido, logo identificou a angústia que penetrara a alma da amada. Mas o que ele não sabia é que uma profunda solidão a acompanharia por toda a vida. E que ela não conseguiria lidar com isso e, por causa disso, em sua mente se formaria a certeza de que, antes que as coisas se perdessem, o melhor seria extirpá-las de sua vida. 

O que Ângela nunca saberia é que Gerrah'Ag, ao arrancar o próprio coração, aniquilara, também, o restante da antiga luz que ainda ardia no seu.


Dentro da casa, a moça sentiu seu coração partir-se. Perdera alguma coisa. Perdera alguma coisa. Voltou ao gramado correndo e olhou para o alto, para a mesma estrela que antes a absorvera tão profundamente. Perdera alguma coisa, repetia para si mesma. 

O pobre e apaixonado homem, que a havia seguido, logo identificou a angústia que penetrara a alma da amada. Mas o que ele não sabia é que uma profunda solidão a acompanharia por toda a vida. E que ela não conseguiria lidar com isso e, por causa disso, em sua mente se formaria a certeza de que, antes que as coisas se perdessem, o melhor seria extirpá-las de sua vida. 

O que Ângela nunca saberia é que Gerrah'Ag, ao arrancar o próprio coração, aniquilara, também, o restante da antiga luz que ainda ardia no seu.

Comentários

Albir disse…
Nádia, porque personagens e cenários tão interessantes voam pra longe?
Você continua malvada, né?
Paulo Barguil disse…
Nádia, que texto maravilhoso, provocando um turbilhão de emoções no leitor! Obrigado.

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