INSPIRADO >> Carla Dias

Jiao Tang

Aceitou aquela incumbência. Reservou tempo, adquiriu conhecimento, fez planejamento. Uma missão daquelas exigia dedicação que ele não estava acostumado a oferecer. 

Ateve-se aos detalhes, estudando suas nuances, analisando seus ecos, as consequências consideradas inesperadas somente porque não foram assumidas, mesmo estando estampadas na barra das ações cometidas. 

Concentrou-se no que não sabia, inclusive naquele quadro pendurado na parede que não era sua, porque preferia não viver com 2400 prestações do que fosse e era incapaz de permanecer no mesmo ambiente por mais de um ano.

Havia o que desamava profundamente: mensagens de divulgação de produtos que nunca cobiçou, água saborizada, café morno e ralo, pessoas nos trens do metrô que falavam mais alto do que os seus fones de ouvido eram capazes de superar. 

Alcançou resultados nunca almejados. Metas foram negociadas, objetivos foram derrubados, forças positivas e negativas brigaram pelo próprio espaço no cenário de realizações. A vida o desafiava e ele a desafiava de volta.

Dedicou-se àquela construção: a gravata, os trejeitos, o coração tentando escapar pela boca, as pernas bambas como costumavam ficar quando avistava a menina de olhar de abrigar distâncias a zanzar pelo pátio da escola, seus cabelos desgrenhados oferecendo a ele as primeiras impressões sobre um apanhado de insurreições indispensáveis.

Lançou-se àquela necessidade, item suculento para lista dos ostensivamente ignorados. Missão indecentemente dispendiosa – tempo, confiança, fascínio escoavam pelas horas em que preferia estar em outro lugar, mas continuava ali, elaborando saídas para caminhos sem volta, construindo pontes para atravessar abismos, falando com portas fechadas na cara ao pronunciar a primeira palavra.

Houve dias em que considerou abdicar do seu comprometimento com uma lembrança e uma lista de itens que um dia pareceram impossibilidades. E se desaparecesse? Apontasse no mapa o lugar que o acaso escolhesse e se mudasse para outra geografia para lidar com suas moedas diferentes e seus idiomas outros. 

Palavras das quais não entende significado sempre o atraem. Costuma meditar sobre muitas delas, repetindo-as até decorar sua música. Ao compreender o que as move, qualifica, exemplifica, sente-se compelido a admirá-las com a desinibição do ignorante, até desnudá-las e mergulhá-las na tradução. 

Devotou-se às buscas anotadas, durante os intervalos da escola, enquanto a observava. Sentava-se na mureta que dava vista para o pátio, como se ele fosse palco, apenas para testemunhar a menina se negar a interagir com os outros alunos, desaparecendo entre a excitação daqueles que não aguentavam mais aprender português, matemática, biologia. Preferiam a fila da sopa, os doces traficados pelo aluno do 1º R e vendidos por três vezes o valor que a tia do bar da esquina vendia, a briga entre o grupo de samba canção e o de hip hop, que acabavam na mesma agenda de evento do baile da escola.

Naquele pequeno caderno espiral, anotou uma lista inspirada na cadência do caminhar da menina. Tudo nela lhe fisgava interesse. Enquanto ela fazia o papel de quem não se importava, circulava vagarosamente pelo pátio, prestando atenção a tudo e a todos, registrando interesses e necessidades, analisando comportamentos e reconhecendo talentos. Sem assumir o cargo, resolvia problemas que identificava no funcionamento da escola e que poderiam prejudicar a todos. E as pessoas não se davam conta, mas lhe davam apelidos sem o menor pudor ao colocar em prática a capacidade de insultar. 

Há dias em que deseja um desejo outro, dos que oferecem mais alívio do que obstáculos. Então, lembra-se da menina: braços largados ao lado do corpo, jeans herdado que não lhe caiam bem, cabelos desgrenhados de um jeito que o agradava tanto, que respirava fundo a cada cinco minutos. 

Seu olhar de abrigar distâncias, disfarce perfeito para quem realiza sem precisar de contrapartidas que não seja a realização em si.

Imagem de jiao tang por Pixabay

carladias.com


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Que texto lindo e aconchegante!!! Perfeito para uma chávena de chá ao som de Marianne Faithful cantando Scarborough Fair ou, ainda, Sandy Denny: Who Knows Where the Time Goes?

Vc, clássica, sempre.
Paulo Barguil disse…
Carla, sutil a transição na descrição sinuosa e pujante dos personagens. Obrigado pelas memórias que visitei... ;-)
Unknown disse…
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