ENCONTRARAM-SE - Albir José Inácio da Silva

 

Não, talvez melhor dizer desencontraram-se. Porque não se pode chamar de encontro uma tal repelência. Também não foi marcado, não foi querido, planejado. Foi obra do acaso, e o acaso, quando quer, trabalha mal. Mas se alguém quiser insistir no tema, pense num encontrão. 

Teriam se evitado, teriam tomado direções opostas se desconfiassem da existência um do outro. Mas, sabe-se lá por que coincidência, esbarraram-se. E repugnaram-se. 

“Docinha” como era conhecida, desmanchava-se em delicadezas, singelezas e doçuras. Voz de anjo e jeito de fada, sonhadora, de sua boca só se ouviam carinhos, homenagens e orações. De suas mãos, só afagos. 

Ele, um ogro mesmo, como era chamado. Voz alta, mal-educado, arrotava e xingava em qualquer lugar. Mulheres, para ele, objetos. Chatinhas, mas, quando não eram muito frescas, atendiam umas vontades. “Servem quando servem”- dizia sempre. 

— Um brucutu, só a custo deve manter-se nos dois pés. Quando ri parece relinchar. Pode haver alguém mais sem noção? – perguntava a moça. 

Ele contra-atacava que ela desatendia ao mínimo para uma mulher. Conseguia não ser bonita nem feia nem interessante. Uma mosca morta, uma insignificância. Irritava-o, não pelo que fazia, mas porque existia. 

O acaso nem sempre convence, e as coincidências desafiaram os números. Viram-se mais vezes e desdenharam-se outras tantas. Xingaram-se, ela em cochichos e resmungos e ele aos brados e declarações públicas. 

Tão ácidos eram os comentários na ausência e as refregas na presença, que todos acreditavam na reciprocidade da repulsa. E ninguém desconfiou quando eles gastaram muito tempo e saliva falando mal um do outro. O assunto já não interessava, mas eles continuavam. Prometiam novos e maiores desaforos para a próxima vez. E, por acaso, e só para brigar, encontravam-se. 

E foi assim que um dia, de novo, encontraram-se, provocaram-se, desafiaram-se. Experimentaram-se. Provaram-se.

Aprovaram-se e fundiram-se. Ela, comedida, conteve-lhe a fúria com a boca, os braços e as pernas. Ele, espaçoso, espalhou pelo quarto as dúvidas, os melindres e os limites dela. 

Com sofreguidão, liquefizeram-se. E o bruto falou de “ternura, casamento e amor eterno”. E a doçura replicou em “cale-se, mais força e deixe-se de lirismos”. Com arrebatamento, liquidaram-se e ressuscitaram-se. 

Mas deixemo-los, que não somos bem-vindos. 

E calemo-nos, que as ênclises são muito cansativas.


P.S.: Esta crônica integra o Projeto "Crônica de um ontem" e foi publicada originalmente no Crônica em 11/03/2013.

Comentários

sergio geia disse…
Sem palavras. Sensacional!
Sandra Modesto disse…
Uma maravilha. Parabéns!
Carla Dias disse…
Que lindeza de texto, Albir!
Albir disse…
Obrigado, Sérgio, Sandra e Carla Dias!
Paulo Barguil disse…
Divertida e intrigante, mais uma vez, a crônica, Albir. Parabéns!

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