SERINGAS E MILITÂNCIAS >> Albir José Inácio da Silva

 

- Não tem gotinha, não? – perguntou Afonsinho, forçando um chiste para agradar a enfermeira.

 

Exausta, ela o encarou de mau humor, terminou o cadastro e apontou a fila. A mulher e os dois filhos acompanhavam a cena à distância.

 

 “Um homem da paz,” era assim que Afonsinho se definia, pelo menos até o advento da pandemia. Sempre evitou temas polêmicos, política, religião e assuntos mais complexos que exigiam conhecimentos e leituras para as quais ele não tinha paciência. “Tanta coisa divertida para se conversar”, dizia ele.

 

Mas agora falava com veemência e às vezes nem ele mesmo se reconhecia nos debates.  Não se intimidava mais com títulos e diplomas, defendia com ardor suas opiniões e estava sempre conectado. Ficou feliz em saber que sabia mais do que pensava. Grandes sábios na internet concordavam com ele e lhe davam subsídios e argumentos para embasar suas certezas.

 

- Essa imprensa sempre falou o que quis, mas agora temos o zap, não nos enganam mais. Eu não sabia que era tão fácil entender dessas coisas!  – comemorava.

 

Até os filhos e a mulher estavam gostando do novo homem entusiasmado com questões universais que antes ignorava.

 

E foi assim com a pandemia. Rapidamente Afonsinho ficou sabendo que o vírus chinês era uma tentativa de dominar o mundo e, como esclareceu Elba Ramalho, “uma ação de comunistas para destruir os cristãos”.

 

Não bastasse o incômodo do isolamento, “coisa de maricas” que cerceia o direito sagrado de ir e vir, e a palhaçada das máscaras, outro atentado à liberdade pessoal, os alienados pediram e os laboratórios trabalharam freneticamente nas vacinas. Enquanto a imprensa e os incautos festejavam a iminência da invasão dos corpos pelas agulhas, Afonsinho soube, por suas redes, toda a verdade por trás da “satanavac”.

 

A prisão dentro de casa acabou com o recente prestígio intelectual que ele adquiriu na família. Para seu desespero, mulher e filhos começaram a sonhar com vacinas, festas e abraços. Ele insistia ainda, e provava com postagens e citações de sábios, astrólogos e sacerdotes, que as picadas carregavam chips com a marca da besta e mexiam com o DNA da pessoa, afetando a sua alma. Depois o incauto ia parar no inferno e não sabia por quê.

 

Tudo era uma grande conspiração. Líderes de todo o mundo entregaram docilmente seus braços à sanha das agulhas. Presidentes, reis, religiosos, conservadores, todos pareciam trair seus seguidores submetendo-se à dominação vermelha.

 

No Brasil, pelo menos no início, ainda se ensaiou alguma reação, com o presidente decretando sigilo de cem anos sobre o seu cartão de vacinas. Afonsinho apoiava:

 

- Ele tá certo! Vacina é igual voto, tem de ser secreto. Eu também não mostro minha caderneta!  - exaltava-se Afonsinho, mas sentia que a batalha estava perdida.

 

Chegou a vacina e pra piorar, nos termos da lei, a obrigatoriedade.

 

A família ludibriada pela imprensa, como dizia Afonsinho, correu a se vacinar. Ele adiou quanto pôde, inventou desculpas, compromissos. Mas a escola das crianças começou a pedir comprovante e a repartição em que trabalhava ameaçou segurar o pagamento. Mulher e filhos levaram-no quase à força ao posto de vacinação.

 

Na fila, Afonsinho ainda falava mal da vacina e da obrigatoriedade. Protestava por direitos humanos e liberdades ameaçadas pela ditadura dos laboratórios comunistas.

 

- A culpa é do povo que não reage. Por muito menos os colegas americanos invadiram o Capitólio!

 

Mas ao se aproximar da mesa, silenciou. Respirava com dificuldade, as pernas tremiam, suava de pingar no queixo.

 

- Seu nome?  – perguntou a enfermeira.

 

Afonsinho  gaguejou e pediu pra sentar.  Correram com uma cadeira.

 

- O senhor tá doente! Então não pode vacinar. Tem que melhorar primeiro.

 

Antes que a família se aproximasse, preocupada, Afonsinho cochichou:

 

- Né doença não, moça. É que eu tenho nervoso de injeção.

 

                                                                                ***

 

E.T.: Brincadeiras à parte, aicmofobia é um transtorno sério e precisa ser considerado.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Satanavac foi de mestre! Esconder o medo de agulha atrás do discurso demagogo foi de gênio! A-do-rei!
Sandra Modesto disse…
Ótimo ler uma crônica sobre negacionismo, realismo e Brasil. Sem contar que as notícias de hoje, são "animadoras"

No dia D
Na hora H
Zoraya Cesar disse…
concordo com a Nádia, satanavac foi genial. haha, sua história me lembrou, transversalmente, a do Plebiscito, de Artur Azevedo. E ainda aprendi uma palavra nova! hahaha, depois eu q sou malvada, né? Muito bom,Dom Albir!
Que crônica MARAVILHOSA!!!
Vou agregar satanavac ao meu vocabulário! Genial!
Carla Dias disse…
Albir, que crônica fantástica!
Sem contar que "satanavac" foi fantástico. :)
Paulo Barguil disse…
Ah, Afonsinho, não se preocupe! Você terá outras oportunidades para ampliar seus conhecimentos e partilhá-los! HAHAHAHAHAHA
Albir disse…
Obrigado Sandra, Nádia, Zoraya, Carla, Clara e Paulo, pela generosidade de seus comentários.

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