TIA LURDINHA >> Albir José Inácio da Silva

 

Eu tinha sete anos e não me lembro de muita coisa daquele tempo, mas os gritos de Tia Lurdinha à beira do poço eu nunca vou esquecer.

Outras crianças chegaram de todos os lados porque não havia cercas, o terreno tinha muitas casas de barro e sapé e os gritos foram ouvidos em todas as direções.

- Meu Filho! – dizia ela cada vez que completava uma volta e olhava para o poço.

Depois das crianças, chegaram as mulheres, olhos arregalados, arranhando-se nas moitas de vassoura.  

Da Tia Lurdinha podia-se dizer muita coisa, que falava demais, fazia fofocas, era chegada num escândalo, mas não que era descuidada com os filhos. Vivia para eles as vinte e quatro horas do dia.

Mas nenhuma mãe sabe dos filhos o tempo todo e ela tinha onze, de dois a dezessete anos. Surgiam na hora de comer e dormir. Viviam soltos pelos matos e entre as casas como as outras crianças. Os filhos eram comuns assim como o poço e o varal. Adultos eram autoridades e quem estivesse por perto cuidava de filhos, sobrinhos, netos ou vizinhos.  Corria tudo bem, exceto por alguns arranhões e espinhos no pé.

Avisados, os homens foram os últimos a chegar porque vinham dos roçados. E logo começaram as providências.

- Uma corda depressa! – comandou Tio Getúlio, com autoridade de mais velho e dono de uma carroça.

Despacharam-se os moleques em todas as direções. O falatório aumentava, minha tia gritava de tempos em tempos:

 - Ah, meu filho!

O lugar virou uma feira, todos falavam e andavam de um lado para o outro. A corda chegou depois de muita aflição e os homens seguraram uma ponta, fincando os pés no barro. Pelos olhares, Dirceu, soldado desde o mês passado, percebeu que era dele a responsabilidade.

A descida foi demorada até que ele gritou lá de baixo:

-Aqui não tem menino nenhum!

- Meu filho! Cadê meu filho? – gemeu Tia Lurdinha.

Na minha atrapalhação com os números eu tentava contar os primos. Faltava o Caco, mas ele tinha dezessete anos e não caía mais em poço.

- Ô cumadre, qual foi o menino que sumiu? – perguntou Tia Dalva.

- O Tidinho. Deixei ele na esteira pra estender roupa no varal – respondeu.

- E o que é isso aí? – Tia Dalva apontou para o colo da irmã.

- Ah, meu Deus! – gritou Tia Lurdinha. Beijou e abraçou com tanta força o Tidinho que ele chorou.

Ela colocou o menino no colo da outra, correu e se trancou no quarto de ferramentas. Não adiantou bater na porta. De noite, Tio Domiro queria arrebentar a tramela. Mas Tia Dalva acalmou:

- Deixa Domiro. Dá um tempo pra ela.

No dia seguinte ela saiu, tomou banho e foi pra cozinha que tinha de dar almoço. Nunca mais falou deste assunto, fazia até cara feia, a Tia Lurdinha.

Comentários

branco disse…
mestre albir. nem vou falar sobre estilo, se é bom ou não, mas uma coisa te digo : esses infinito de filhos, esse o poço (aqui chamávamos cacimba), o desespero como esses.... tudo isso foi minha infância. grande mestre!
Sandra Modesto disse…
Só as mães como tia Lurdinha,são infinitas nessas dores e sustos. O poço, a narrativa no texto, fico com o Branco; esses infinitos de filhos. Parabéns, Albir.
Nadia Coldebella disse…
Eu amei o jeito q vc contou essa história! Adorei a forma como vc teceu sua narrativa, lembrando um jeito de contador de causos, mas tbem me deixando com um frio na barriga, uma sensação de "Aí, meu Deus, e agora?". A cena toda fica muito bem construída e é fácil visualizar o povo em volta do poço e a tia desesperada com o filho desaparecido no colo (gargalhei aqui, impagável!). Fico pensando q o controle de natalidade e água encanada foi uma benção pra todo o povo. Não sei se aconteceu de verdade, imagino q sim, mas é excelente essa sua habilidade de colocar a gente como expectador da história. Grande abç!
Zoraya Cesar disse…
Dom Albir, por uns breves instantes li com o coração aos pulos, qdo li 'poço', mas a narrativa me conquistou tanto q esqueci os pulos do coração e li maravilhada. E nao me assustei mais, ao contrário, terminei com um sorriso de alegria.
Albir disse…
Obrigado Branco, Sandra, Nádia e Zoraya pela gentileza de seus comentários.

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