PROVEDORA DE ALEGRIAS INCONTESTÁVEIS >> Carla Dias >>


Acordou com a necessidade esquisita de expandir. Expandir o quê? Levantou-se da cama sem detectar novidades: sonolento, como se não dormisse há vinte anos; apesar de ter dormido profundamente, por horas corridas. 

É preciso alongar o espírito esportivo, antes de encarar os imbróglios da realidade. Ele acredita nisso, mas com certa elasticidade, que não nasceu para inflexibilidade. 

Avesso a dilatar verdade para disfarçar mentira, nunca será capaz de ampliar seu círculo de amigos. Tem dois... Um e meio. Aquele ser estranho no qual ele confia completamente, a ponto de liberar umas confidências, e o cachorro que se deita aos seus pés, enquanto lê o jornal.

A hora e meia que antecede a saída dele da casa é para prolongar a despedida com o recinto e o ser humano presente. Encompridaram o caminho até o trabalho, o que tirou dele o direito a um trio de meias horas, distendendo a o seu já tão parco entusiasmo para praticar a profissão.

Observa a filha deitada no tapete, olhando para o teto. Ela espichou em dois dias o que parece anos. É coisinha humana indecifrável. A feição grave não orna com a altura da menina. Como pai, aceita a criança, não por causa desse negócio de amor incondicional, que parece condição para trazer pessoa ao mundo, mas a humanidade já entendeu que não é bem assim, certo? 

Quase certo?

É por a filha ser uma criatura que sabe engrandecer curiosidade, e ele acha a curiosidade a coisa mais fascinante do mundo. É porque, a cada dia, a curiosidade dele é amplificada pela esquisitice da filha, acrescentando ao convívio deles uma série de momentos que valem arquivo na lembrança. A esquisitice de um acresce a do outro. Ainda não sabe se isso é bom ou ruim, mas enquanto for interessante, ele puxará a cadeira e se sentará, espectador dos acontecimentos dedicados a ela.

A solidão anda assanhada e deu de avultar um tanto a mais, a cada dia. Enquanto dirige, passando pelas ruas que vão desaguá-lo à porta da sua antiga casa, pensa no que vem se dilatando dentro dele e ganhando espaço fora dele, porque a ex-esposa disse que ele anda com o olhar estranho, que era melhor ir ao médico, porque não pode ficar assim para todo o sempre.

Todo o sempre é um lugar estranho para ele. Porém, pensando no todo o sempre possível, o único amigo é de todo o sempre, mas vai acabar, ou ele acabará antes. A filha é de todo o sempre, o registro garantirá que isso seja lembrado, na hora de resolver o espólio.  Gato... sim, seu cachorro se chama Gato, aquele ser que o compreende mais do que qualquer outro ser, será mais breve do que ele gostaria. O todo sempre se desenrola injusto, quando pensa em perdurar. Não quer ser um eterno sobrevivente. Deseja ter uma vida que não seja apenas defesa contra o perigo. 

Expandir o quê? pergunta-se, a voz rouca, por conta de mais cigarros do que gostaria de assumir que já fumou. A filha bate os pés no banco da frente, chamando a atenção dele, que passa a observá-la pelo retrovisor. Figura esquisita essa filha, ele pensa, enquanto a menina faz o dinossauro-brinquedo voar feito gaivota e se comunicar por meio de suspiros. 

Não faz ideia de quando ela soltará a primeira, mas tem certeza de que gostará de escutar a voz dela em palavras. Talvez a filha venha a latir, antes de falar. É que ela vive agarrada ao Gato, que, sabe-se lá como, arranca da moleca raras gargalhadas. 

Ela é bem mais distraída do que ele achava, mais frágil. Torce para que o todo sempre não a leve primeiro, porque seria incômodo ter de se despedir de criatura tão curiosa. Vai que, diante de uma curiosidade mais profunda, a filha descubra um remédio necessário para todos, ou faça parte de uma banda que lote estádios, mas que, em raros dias de folga, se apresente em um daqueles botecos de bairro, como era antes de tudo se tornar demais.

Provedora de alegrias incontestáveis.

Estaciona o carro para a devolução. Pega a filha pela mão e conduz até a porta da casa. Aperta a campainha e ela atende, o requinte irritantemente sedutor de uma beleza que, ele já sabe, é vazia. Abraça a filha, que se enrosca no pescoço dele e gasta alguns segundos ali, quieta de tudo. Esquisita essa menina, que lambe a face dele, antes de entrar na casa e a ex-esposa fechar a porta, sem se despedir. 

Talvez ela venha a latir, antes de dizer palavra. O médico disse que não é normal, mas não há explicação para o silêncio dela. E que pode se tornar um problema, mas ele se negou a se desfazer do Gato, que parece ser o único modelo que a menina segue. Espera o dia em que ela e ele latirão juntos, comunicando-se como nunca.

A filha é um ser esquisito e fascinante. Ainda será das curiosas que valerão a pena, tem certeza. Espera que ela pare de beijar com lambidas, porque talvez isso seja esquisito demais para um adulto, dependendo do cenário, claro. Mas até lá, vai observá-la mais de perto. Vai pronunciar palavras que valem a pena ser escutadas, para que, dia desses, ela as repita, e depois, compreenda os seus significados.

Pensa no que deveria expandir, mas não chega a um consenso. Ainda assim, está certo de que deseja se demorar em algumas alegrias, incluir na rotina fragilidades e piadas sem graça, que são as que ele acha mais divertidas.

Quer espalhar algo bom em um mundo que mal conhece... que mal o conhece.

Oferecer algo significativo a quem não conhece... a quem não o conhece.

Só que o problema é o mesmo de anteontem: continuar. Desdobrar a existência, esticando a própria importância, até que ela se abra para a vida, livre-se da condição de sobrevivente, não de um momento, de um acontecimento, de um período, mas do todo o sempre.

Que todo o sempre é lugar onde não quer esquecer a si mesmo, ou o amigo, o Gato, a filha.


Imagem © S. Hermann & F. Richter por Pixabay

carladias.com


Comentários

branco disse…
carlinha,carlinha...falar o que sobre seu texto?...meu silêncio fala melhor...
Zoraya Cesar disse…
"Todo o sempre é um lugar estranho para ele. Porém, pensando no todo o sempre possível, o único amigo é de todo o sempre, mas vai acabar, ou ele acabará antes."
Carla, faço meu o silêncio do nosso lord white, para não estremecer a beleza desse texto.
Albir disse…
Todo o sempre... que assusta, embala e arrasta. Como suas letras.
Carla Dias disse…
Branco, seu silêncio me deixou feliz que só, no sentido mais poético. Beijo.

Zoraya, obrigada... sempre. Beijo.

Albir, vivemos nessa confusão que é a mistura da lindeza das coisas da vida com o que assusta, embala e arrasta.

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