PASSOS PARA TRÁS >> Carla Dias >>


Ele não é assim tão complexo. Veja as rugas que mapeiam seu rosto, quando é atingido por dúvidas. O olhar desviado, a cada tentativa de nublar a verdade. Percebe-se a voz dele mudar de tom, a cada vez que é preciso dizer algo com o qual não está completamente de acordo. Sempre que se sente pressionado: insiste, distancia-se ou escolhe acreditar que não há nada mais ali a ser observado, compreendido, nutrido.

Quando dói: respira fundo, como raramente o faz.

Quando alivia: sorri largo e sonoro, em uma cadência diferente daquela que enfeita o seu cotidiano.

Quando se sente contrariado: silencia, profundamente.

A rotina controlável é o que o mantém no lugar de sempre. Cerca-se, então, do que é seguro e conhecido. Há nada de errado nisso. Mas sou eu aqui, a narradora intrometida, só que em dia de pá virada, de par com uma melancolia dos infernos. Sou eu quem tem de narrar, meu caro leitor... desatento?, o que se passa com essa pessoa vestida de personagem.

Todos os dias o mesmo do mesmo. Quem disse que mudar é questão de querer não conhece a insistência dos obstáculos. Ele nem acha assim tão pecado desistir, porque, às vezes, desistir significa sobreviver a uma escolha equivocada, que se insiste transformar em busca eterna. Até aí, consigo compreendê-lo e me identificar com ele. Mas observe mais de perto: o olhar que distribuiu há pouco, naquela sala cheia de pessoas interessadas no que ele tinha a dizer, deu lugar a outro.

Você pode pensar em mim, insano leitor, como se eu fosse o fantasma dele. É que, veja bem, estou parada na frente dele, o olhar engalfinhado no dele, que até sinto receio de respirar fundo e ele escutar... me escutar. Já pensou o que me aconteceria? Demitida, justa causa, com o currículo manchado por quebrar uma regra crucial: não se envolver com o personagem. Uma narradora banida das páginas dos livros, das tramas e dos sonhos e desesperos que as conduzem. Nunca mais você leria minha narração, que pode até lhe parecer inconveniente, mas tenho certeza que lhe faria falta. Por que você me escuta, não é? Você escuta a minha narração silenciosa. Criou voz para ela.

Dois passos para trás. 

Ele diz um palavrão qualquer, que não vem ao caso. Esbraveja que é uma beleza. Aliás, nunca vi alguém se tornar tão ranzinza ao se perceber fragilizado. Porque, geralmente, ele consegue se convencer de que tem o controle de tudo e de todos que o cercam. Percebe? É o personagem mais humano que já encontrei. Outro dia, narrei o momento em que ele decidiu sair, e ao botar os pés fora de casa, não sabia para onde ir. Havia somente aquela urgência, uma necessidade de ir e o desespero de não saber para onde.

Cansado, bebe uma xícara de café morno e vai se deitar. Pensa: com sorte, cairei no sono rapidinho. Dependesse de mim, eu o levaria direto para o sono profundo e apaziguador, porque me inquieta a inquietação que ele tenta calar. E ao acordar, eu narraria o momento em que, ao abrir os olhos, viesse com esse despertar a consciência do quanto de vida ele vem deixando de viver ao se dedicar tanto a acreditar que o mundo é apenas o mundo no qual ele sabe trafegar com tranquilidade, evitando contrariedades.

Um aparte?

Se um narrador fosse narrar a agonia dessa narradora intrometida, teria trabalho em descortinar significados. Esse negócio de se intrometer na história dos personagens, de se permitir envolver por eles, ainda vai cobrar seu preço. O mais estranho de tudo é eu não me importar de pagar por isso.

De volta à narração:

Amanhece. Ele acorda com a sensação de que a vida é a mesma, de que o mundo continua a girar de jeito a manter o tudo dele no exato lugar no qual sempre esteve. Evita, como sempre, dar atenção ao que o incomoda, desde quando? Não saberia dizer, que comecei a narrar a vida dele, depois de muitas histórias acontecidas. Ok, desculpe, de volta ao trabalho:

Ele caminha em direção à cozinha para preparar um café e pensa: tomara que hoje não faça muito calor. Tropeça no tapete e diz uns palavrões (que não vêm ao caso), enquanto esconde, com mais competência ainda, as inquietações necessárias. 

Fim do capítulo.

Nota de narradora intrometida: Sim, reconhecer as próprias inquietações é necessário.

Próximo capítulo.

Todos os dias o mesmo do mesmo. Quando o faz, teima com maestria, exigindo...


Imagem © 愚木混株 Cdd20 por Pixabay


carladias.com

Comentários

Anônimo disse…
Fiquei curioso para conhecer um pouco da narradora, em uma outra crônica poderia inverter os papéis. De onde saiu tanta inspiração (Me intrometendo também) é muito interessante a crônica, parabéns!
Carla Dias disse…
Olá anônimo. :)

Essa narradora tem história, quer dizer, narra histórias nas quais adora se meter. É um personagem, sem saber que o é. Observar a vida, ao nos desfazermos de alguns filtros e máscaras, nos aproxima dos personagens-pessoas.
Obrigada pela leitura!

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