SEM SARCASMO >> Carla Dias >>


Eu não conheço o Sr. Geraldo. Ele é apenas um nome em uma matéria de telejornal que destaca a negligência e uma boa dose de sarcasmo, em momentos em que ninguém deveria ter de lidar com ele.

Ok, não é “apenas”. Afinal, Sr. Geraldo é uma pessoa, certo?

Certo.

Nas minhas férias, tenho o péssimo hábito de deixar a televisão ligada em canais de jornalismo, enquanto cuido da vida e até escrevo meus textos. Durante todo o ano, eu lido com as notícias de grande destaque, que tem a ver com todos nós. Perdem-se, então, da minha percepção, essas pequenas histórias. Pequenas não por serem desimportantes, mas por não ganharem espaço para o grito necessário.

Durante as férias, foram várias as histórias sobre atendimento, não apenas no setor da saúde, mas na geral mesmo. Claro que as notícias chegavam com o sensacionalismo escancarado. Em alguns casos, sinceramente eu o achei deveras necessário.

Temos a tendência de nos distanciarmos dos problemas que não são nossos. Às vezes, nem é por descaso, mas porque é mesmo difícil a impotência que vem com o conhecimento sobre eles. Por exemplo, eu não poderia fazer o que fosse pelo Sr. Geraldo. Eu gostaria, mas como? Um senhor que morreu, porque o SAMU decidiu, em uma ligação, que o caso dele não merecia a urgência que o atendimento exigia. Depois, foram feitas outras ligações, porque o vizinho insistiu, considerando que o motorista da ambulância do pronto-socorro da região estava em horário de almoço, era preciso esperar.

Como esperar quando não há tempo para a espera?

A impotência é uma sacana mesmo.

Com as ligações seguintes, veio o sarcasmo. Adoro um bom sarcasmo, para um escritor, ele pode ser de uma riqueza imensurável. Porém, ninguém que está diante de alguém sofrendo merece ter de lidar com ele, quando o foco é socorrer essa pessoa.

Os atendentes do SAMU foram fantásticos, no quesito sarcasmo, o que me fez brigar com a televisão, gritar pra ela coisas como “o que diabo você está fazendo?”. Eu sei, há os trotes, o que sempre me parece um bom raio-x da capacidade do ser humano de ser cruel e indiferente aos desafios que os outros têm de encarar. Porém, ali já não era mais a questão. A questão era que Sr. Geraldo deveria ser socorrido pela ambulância do hospital e não do SAMU, porque a médica do SAMU praticamente chamou o vizinho de idiota, por não entender que aquele é um serviço para situações de urgência.

Bom, a situação do Sr. Geraldo era de urgência. Porém, ele teve de esperar o motorista do hospital terminar seu horário de almoço para ser socorrido – enquanto vomitava, sentia muita dor e não conseguia se mexer, com problemas cardíacos em seu histórico médico – e morreu horas depois de chegar ao hospital.

Não vamos levar para outro lado... 

O SAMU é um serviço para atender urgências pra lá de emergências. Como um dos atendentes disse ao vizinho do Sr. Geraldo, “tá no nome: Serviço de Atendimento Móvel de Urgência”. Também o motorista do hospital merece ter a hora de almoço dele. Todos nós merecemos. Não há nada de errado nisso. O que não está muito certo é que, além de se determinar se é urgência ou não, pelo telefone (ok, eu entendo a triagem), atendentes e médicos tratam o desespero de quem precisa de atendimento como se fosse ignorância de quem liga, porque ele não entendeu o significado do serviço. E o pior, é que o vizinho do Sr. Geraldo entendeu direitinho, não?

Sim, há assuntos muito mais abrangentes, que se esparrama além da história do Sr. Geraldo. Coloque aí no topo da lista a violência. Mas não vamos fazer de conta que não existe uma ligação aí. Violência é uma criatura que alimentamos com descaso e a incapacidade de lidarmos com o outro sem que ele atenda aos nossos padrões de comunicação e desenvoltura para explicar o problema. Sempre acabamos ali, no mesmo lugar: eduque com riqueza, colha indivíduos mais preparados, capazes de se colocar no lugar do outro e não de tratá-lo com sarcasmo, quando a morte ronda seus afetos.

Espero que você nunca tenha de estar na situação que viveu o Sr. Geraldo. Não há sarcasmo algum nessa minha declaração. 

Imagem © Leonora Carrington

carladias.com

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