RUBEM ALVES E O MARCA-TEXTO>>Analu Faria

Tive o privilégio de assistir a uma palestra do Rubem Alves, há muitos, muitos anos. Na palestra, o autor contou uma história da qual não me esqueço: a de quando um estudante disse a ele - Rubem Alves - que os professores  dele - estudante - usavam os textos do escritor em sala de aula. Empolgado, Rubem Alves pergunta: "Ah, é? Como vocês trabalham o texto?" e a resposta broxante : "Grifamos os dígrafos e encontros consonantais."

Tempos depois eu me tornei professora de inglês e lidei com muitos dígrafos e encontros consonantais. Eu achei que ia ser muito interessante, mas, sabe, quando você dá aula, às vezes não dá para dar muita bola para o lirismo. Quadro branco, lição para corrigir, e, como eu não sou uma falante nativa, ainda havia mil regras e sons que eu tinha de prestar atenção para não errar. Meu primeiro emprego vinha com uma grande caneta marca-texto e um monte de coisas para grifar.

Um pouco depois de começar a dar aulas, fui morar sozinha. Achei que seria uma coisa muito poética, aventureira, vanguardista, especialmente no começo dos anos 00 numa cidade do interior de Minas, onde as mulheres só saíam de casa quando se casavam. Houve uma certa poesia sim, mas o que eu mais tinha comigo eram dígrafos e encontros consonantais. Se o cheiro do café é lírico, esquentar a água, passar o café, lavar a louça eram a porcaria dos digrafos e encontros consonantais. Não que eu não passasse o café quando morava com minha mãe, mas é que quando você tem 23 anos e se aventura a fazer algo que ninguém mais faz, é fácil achar que as coisas chatas do cotidiano se transformarão magicamente em poemas do Manoel de Barros.

À medida que a vida prossegue,  dá para perceber que a gente não vai conseguir fugir dos dígrafos e encontros consonantais. Aliás, é o que mais vai ter. Vai ter também colocação de hífen, voz passiva - sintética e analítica - vai ter vírgula, crase, adjunto adnominal, vai ter oração subordinada substantiva objetiva direta. E indireta também. Vai ter uma gramática toda no café e na aventura, como sempre teve, como sempre vai ter. Como tem nos textos do Rubem Alves e até nos poemas do Manoel de Barros. Mas se a gente olhar de longe... ah, se a gente olhar de longe... meio que esquece o que é um dígrafo, meio que não lembra mais o que é um encontro consonantal.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Que lindo texto, Analu!

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