CAMAROTE >>Analu Faria

Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que samba é vexame
Pra que discutir com madame?
(João Gilberto)

       
    Na roda de mulheres de pés descalços, ela se destacava. No parque, um sol de rachar, às três da tarde, ela calçava um tênis de cano alto, de couro, preto. Não era de mau gosto, não, muito pelo contrário. Só parecia quente como o inferno. A moça também tinha maquiagem - rímel, delineador, lápis, blush, batom. Chegou tímida, uns olhões esbugalhados de criança curiosa: 

       _ Desculpa, cês tão falando do quê, mesmo?

     Via-se que havia saído da roda de amigos que fazia um piquenique ali perto, um círculo de homens e mulheres que se vestiam à moda das festas de bebida que pisca, esse pessoal que frequenta o camarote. O dia estava tão bonito, era o final da estação chuvosa, talvez fosse mesmo razão pra tanto. "Cadum, cadum*, minha filha", dizia minha avó.

     Falávamos coisas que bruxas falam em público. E a forasteira foi acolhida com carinho, talvez nem ela esperasse isso. Prestou muita atenção no que dizíamos, não tirou o tênis. A maquiagem derretia no canto do olho esquerdo, mas, aparentemente, ervas, plantas, óleos e luas haviam captado a moça. É assim que a Deusa trabalha.

     A visitante, contudo, não esperou o fim da conversa. Saiu quando falávamos de cervix, fertilidade, escolhas. Eu captei o exato momento em que ela piscou os olhos e balançou discretamente a cabeça, como quem acorda de um sonho. Fechou um pouco a cara, mas disfarçou logo num sorriso de despedida. Obrigada aqui, obrigada ali, quem sabe eu vá, gostei muito, sim, etc. Lembrei de que dia desses uma colega bruxa disse : "Não importa que as visitantes não fiquem. O importante é que elas não são mais as mesmas quando se vão."

      De longe, vi a moça se aproximar dos amigos do camarote. Antes de se sentar, tirou os sapatos.


*Cada um é cada um.  

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