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Quem eu teria sido?

Teria escolhido o mundo?

Itinerante, conheceria sua geografia e sua gente. Talvez me perdesse na sua complexidade, mas não tanto quanto na sua beleza, porque dizem que o mundo, o planeta, é deslumbrante. Mesmo quando suas crias o esganam com seus feitos, ele reverbera sua venustidade. Talvez me aventurasse na pluralidade das suas pessoas, permitindo-me saber mais sobre o outro do que o outro já desejou saber sobre mim.

Teria escolhido a solidão?

As paredes de uma casa onde seria habitante única, na qual a iluminação se espalhasse tímida, despertando curiosidade e abafando saudades diversas. Lugar de onde eu jamais sairia. De quando o sol que tocasse minha pele fosse aquele amparado pelo quintal, metros quadrados de liberdade assistida por muros enfeitados com trepadeiras.

Obviamente, teria de dar um jeito no meu medo de lagartixa.

Mas é o que fazemos, certo? Colecionamos medos. Enfrentamos medos.

Muitas vezes, os medos vencem.

Teria escolhido a mente?

Assim, moraria na minha própria casa: ossos, carne, sangue. Imaginaria o lugar, as pessoas, o tempo. Quem sabe, imaginaria nada. Viveria mergulhada num sobrenadar eternamente, durante uma eternidade da qual desconhecesse a duração. Sentiria emoções escolhidas de uma prateleira recheada com diversidade. Choraria e gargalharia ao mesmo tempo. Amaria com a intensidade das tempestades, sem nem mesmo saber o que ou a quem. Seria amor a me consumir na sua pureza.

Nada de alvo. Apenas o senti-lo.

Teria escolhido o escândalo?

Aquelas pequenas barbáries cometidas em nome da espontaneidade. Das que comungam com o desejo contundente. Racionalidade se despediria de mim, assim, sem se sentir abandonando o serviço ainda em horário comercial. Sem se importar em perder o dia e isso fazer falta no pagamento do mês. Eu seria um descarte da racionalidade. Ela me abandonaria à mercê do delírio, ele que adora um escândalo. Ele que me entregaria às nuances de um imaginário se passando por realidade.

Qual roupa eu usaria?

Qual nudez me caberia?

Teria escolhido o outro?

E me rastejaria pelo recinto da vida a computar informações sobre o que o satisfaria. O outro, tão acomodado na minha serventia, passaria a nem pensar na minha existência de outra forma que não fosse como engrenagem. A vida do outro funcionaria melhor com os serviços que eu lhe prestaria. O espírito do outro se amoldaria melhor em seu corpo. Ele seria feliz sempre que a felicidade se assanhasse para ele. Não perderia a chance de aproveitar o que a minha dedicação o ajudaria a alcançar. Em contrapartida, ele me ofereceria umas lascas de prazer, em noites em que sua agenda não estivesse comprometida. Conversaria comigo por alguns minutos, antes de se perder em seus eletrônicos relacionamentos.

Teria escolhido a mim?

E quem eu seria nessa mistura de eu e eles e tudo e o mundo e os delírios e as tristezas e as alegrias e os desejos e as solidões?



Imagem: Menina com bandolim © Pablo Picasso

carladias.com

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Carla, você escreve tão bem, mas tão bem, que nem sei mais o que dizer. Faltam-me palavras, você as usa todas. Você sabe q sou sua fã e amo suas frases. Mas, sinceramente, esse é um de seus MELHORES textos, dentro de todos os seus escritos magníficos. Beijos mudos.
Carla Dias disse…
Zoraya, quem ficou sem palavras, mais uma vez, fui eu. Tanta gentileza com meus escritos. Obrigada por permitir que eles lhe toquem o coração. Beijos.

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