ARQUITETURA DA URUCUBACA (E O DILEMA DO piii) >>> Nádia Coldebella
BREVE HISTÓRIA
DO ELEMENTO URUCUBACANTE
A
palavra, em sua forma original, já existia por aqui na língua tupi-guarani há
muito tempo, com o sentido de mau agouro, azar persistente e energia ruim. É de
se imaginar a grande urucubaca que era viver naquela época: com grande
probabilidade de bater as botas e ser devorado pela ave preta, o urubu. Até então, a urucubaca era sentida, mas não
conhecida pelo populacho geral, ela era fenômeno oculto, acessível apenas a alguns
esgualepados com maior nível de inconsistência. É que ainda não tinha
acontecido nenhum tipo de urucubaca cósmica que justificasse o uso.
Li um
pouco e deduzo que isso aconteceu somente em 1918, quando a gripe espanhola,
Dona Influenza, deu as caras por aqui. Só que essa teoria não é aceita por todo
mundo, mas segundo eu mesma, vou aceitar, que é para não acabar com a graça do
meu texto. Pra se ter uma ideia da força da energia urucubaquiana, a própria
gripe foi chamada de urucubaca, personificando a calamidade, a incerteza e a
tentativa de explicar, por meios místicos e simbólicos, a pataquada da doença. É
que a calamidade reforça o mau agouro e algumas palavras podem evoluir e se
destacar no panteão dos tempos.
A esta altura,
acredito que o leitor fez a associação óbvia que eu mesma fiz. Urucubacas se repetem,
de tempos em tempos, de 100 em 100 anos, sem perder o significado.
A
RESPONSABILIZAÇÃO DO URUBU
É consenso na literatura urucubacável que a palavra urucubaca se associa com os urubus. Eu não tenho ideia de quem foi a criatura que usou a pobre ave de rapina carniceira para descrever a má sorte. Mas imagino que seja alguém parecido comigo, que imaginou a urucubaca que é gente morrendo por causa de urucubacas e as avezinhas rondando para ver se pega um restinho de carniça.
O fato é
que o Urubu é uma ave necrófaga, come carne em decomposição, credo. O pobre
coitado, por causa do estilo de vida, foi considerado impuro, foi ligado a
morte, se meteu numa urucubaca e parou de viver em paz.
Na
maior urucubaca mundial recente, lá por 2020, um presidente que não era coveiro
usou o nome da ave de forma pejorativa, e declarou em rede nacional: “Todo
mundo vai morrer aqui. Não vai sobrar nenhum aqui. (...) E se morrer no meio do
campo, urubu vai comer ainda”. Foi uma época de urucubaca em camadas. Uma lastima
para o pobre urubu, que com essa declaração, achou que ia encontrar fartura.
DISSECANDO
A URUCUBACA
Primeiro
urucubaca em sílabas: u-ru-cu-ba-ca, uma paroxítona respeitável. De uma forma
bem didática, em Tupi-Guarani, a gente teria algo como “uruku”, azar, coisa
ruim, e “baca”, sorte ou destino. Sendo bem literal: destino azarado, sorte
ruim. Algo escrito nas estrelas.
Esse piiiii, bem no centro da urucubaca, pode ter diferentes interpretações, dependendo da raiz e do contexto da língua tupi-guarani. Em alguns casos, ele pode indicar um prefixo que intensifica o significado do uru, ou pode funcionar como um conector entre os outros elementos, o azar e o destino. Isso quer dizer que a complexidade da urucubaca aumenta quando o piiii está no meio, porque é ele quem conecta a má sorte com destino.
A
experiência prática mostra que é a mais pura verdade, porém o piiii é
ainda mais complexo do que a teoria apregoa. Veja, essa palavrinha de duas
letras no meio da urucubaca piora tudo, mas paradoxalmente proporciona alívio: minha
vida está um piiii, que piiii, vai tomar no piiii. A gente
pode brincar com o ele, imaginando como cada pedacinho da palavra foi se
moldando e evoluindo ao longo da história, se incorporando e lascando a
urucubaca.
A
GRANDE LIÇÃO DA URUCUBACA
Estudando
mais profundamente a teoria urucubaquística, é óbvio que a urucubaca carrega
desde sua origem mais original um caminhão de negatividade quando liga azar a
destino. Se a gente mantiver a língua tupi-guarani como base, o contrário seria
algo como porãbaca (algo como nascer com piii virado pra lua). Agora,
pensa numa palavra feia de ler e pronunciar: como poderia competir com a
sonoridade de urucubaca? Por sorte, o piiii, esse elemento paradoxal,
foi estrategicamente colocado bem no meio, o que nos leva a obvia constatação
que a urucubaca de um pode ser a porãbaca de outro.
Essa
dualidade implícita na urucubaca também levanta a outra questão, que me
assusta. Urucubaca não é um azarzinho qualquer. A gente tá falando de desastre mesmo,
destes eventos incontroláveis e inevitáveis, provavelmente impressos no mapa astral
da pessoa. Uma urucubaca é uma coisa grande demais, foge do controle, por isso
é destino. É a predestinação do azar inevitável, seja evento coletivo ou da
vida privada. Seja o que for, não importa, é um piii, você tá lascado. Senta,
relaxa e aproveita a vista.
A
URUCUBACA PESSOAL
É
interessante também pensar que tenho falado como uma expert em Urucubaca, mas
disse tudo isso porque estou pensando na vida privada do ser humano. No caso a
minha, né? Os meses de setembro e outubro têm sido especialmente profícuos e
urubaquizantes e nem meu mapa astral previu.
No dia cinco de setembro vi o portão eletrônico cair estatelado do lado de fora da minha garagem, o meu banheiro entupiu e o carro enguiçou. Meu bolso chorou. Desde então, tenho contemplado duas ou três urucubacas semanais. Esclareço que não consigo prever, pois como eu já expliquei, não dá pra prever, não tá sob o meu controle.
Eu poderia pensar que nessa etapa, a uru veio para o meu destino, para transformar tudo num piii. Com certeza, é um ponto bem interessante de se refletir. Mas parei de me desesperar. Por dois motivos.
O
primeiro, é porque eu descobri outro significado para urucubaca: é o nome de um
tecido quadriculado, em preto e branco, utilizado na fabricação de mortalhas. Aí
está a associação de urucubaca, morte, desgraça. Mas também de fim. O outro
motivo é que ouvi alguém me dizer que o ápice da inteligência emocional é
deixar o acontecimento de fora acontecer, sem que o mundo interno fique
abalado. Nirvana, usfraba, fora da casinha, robô, chame do que quiser, mas vou
me agarrar nisso.
Com
tanta urucubaca, eu ainda tenho uma vantagem: minhas urucubacas vão finalizar meu
ciclo e impulsionar minha transformação. É como se o piii da palavra conectasse
meu destino a essas situações, mostrando que, mesmo diante do imprevisto, há um
caminho de superação e de ressignificação – estou sendo poética para não rir de
nervoso. Porém, se essa intenção der urucubaca, eu pelo menos posso usar o piii
para o alívio catártico da minha frustração.
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