UM DEDO, UMA XÍCARA >> Sergio Geia
Ela estava lá, na tela do meu celular: era uma xícara.
Normalmente, o anúncio passaria batido. No entanto, aquele me chamou a atenção. Uma bela peça. Branca, alguns desenhos, flores vermelhas, e uma alça que fez meus dedos vibrarem.
Se nos primórdios a xícara nasceu sem alça, um pote redondo e tosco, logo, a imperdoável falha foi corrigida. Especialmente em razão de seu uso para as bebidas quentes, como chá e café. Foi o inglês Robert Adam que sugeriu ao amigo ceramista Josiah Wedgwood colocar alças nas tigelas e copos, segundo a pesquisadora Carolina Gasparini – https://www.mexidodeideias.com.br/mundo-do-cafe/a-historia-da-xicara/. Uma xícara decente hoje traz uma alça para proteger os dedos do calor da bebida e facilitar a degustação.
Mas o ser humano é incrível e sua capacidade de criar e transformar é formidável. Aliás, já escrevi sobre isso no remoto 2013, quando falava sobre o romance “A cidade e as serras”, de Eça de Queirós. O personagem principal, Jacinto, era chegado numas bugigangas.
Eu dizia: “Veja o garfo. Tão comum que a gente nem se dá conta do alto grau de sofisticação de suas linhas. Dentes arrojados, leve e delicado. Até então, as pessoas comiam o alimento com as mãos. E o saca-rolha? Que delicadeza e precisão. O anticoncepcional. Uma revolução social. Os óculos. O edredom. A escova de dente. A cadeira. O chuveiro. A taça de vinho. O espremedor de laranjas. O chinelo. A agulha. O cortador de unhas. O pente. O abridor de latas. O canudinho. E o que falar do controle remoto? O celular. O vaporizador. As babás eletrônicas. O fio dental. A panela.” Viva o homem e suas criações!
Jacinto (lembrete: “A cidade e as serras” foi publicada em 1901) tinha em sua casa fonógrafo, telescópio, telefone, telégrafo, relógio que marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, máquina de escrever, de calcular, conferençofone, teatrofone, calorífero, aromatizador, lumes elétricos, e tudo, tudo o que você possa imaginar. Ele falava que a humanidade vivia muito mal apetrechada.
Mas voltando às xícaras. Eu conversava com Adriana num café sobre os tipos de alças — os nossos celulares sobre a mesa (eles escutam!). Pedi um capuccino italiano grande e não consegui enfiar meu dedo no buraco da alça para beber o café, ele não entrava. Tinha que segurar a xícara cheia até a boca com as duas mãos, um incômodo, além do risco de me queimar.
Fico me perguntando quando o ser humano passou do ponto. A alça da xícara que me apareceu na tela do celular era grande, adequada, certamente meu dedo se encaixaria lá, até dois, bem diferente das xícaras que encontro nos cafés das cidades, algumas, nem buraco na alça tem. Robert Adam deve estar se revirando no túmulo. Estragaram a sua invenção.
Ilustração: Pixabay
Comentários