VIZINHOS >> Allyne Fiorentino
Hoje encontrei o vizinho na
padaria, eu o reconheço primeiro pelas pernas. São finas e algo curvadas, como
parêntesis. Ele estava com uma garota de traços orientais. Não o cumprimentei
de imediato.
Uma boa vizinhança em São Paulo é algo raro. Se
você mora aqui, certamente está acostumado com os estereótipos de bairro que se
criou na tentativa de organizar simbolicamente essa multidão. Embora tudo
aconteça naquilo que eu chamo de “comunas paulistanas”, não é fácil vestir sua
túnica, armar-se da sua filosofia e encontrar a sua Atenas.
Quanto você pagaria para estar na
sua Atenas? Eis uma pergunta que as imobiliárias e os corretores de imóveis
sabem que vale ouro. O ar que você respira vale ouro, a quantidade de silêncio
que você deseja vale ouro, o cheiro que entra pelas suas narinas vale ouro, a
cena que sua janela enquadrará vale ouro, as pessoas que você encontrará na
padaria valem ouro. São eles verdadeiros Midas nos guiando rumo à sua maldição.
Eles sabem e exploram esse segredo inconfessável aos desconstruídos: no final
do dia, ao fim e ao cabo (da vida?), você só quer estar entre os seus iguais. Embora
saia da sua boca uma ode à diversidade, você grita desesperadamente pelas
muralhas que te protegerão dos “bárbaros”. Seja lá o que isso signifique pra
você.
E pode significar por apenas
alguns instantes, pois logo ali na frente podem ressignificar, dessignificar,
esses significados estão cada vez mais “líquidos”, palavra que já está afogando
a todos nós no ranço da piscina pop de Bauman. Às vezes o pulmão do bom-senso
já está explodindo de tanta água, mas dá-le líquido todo dia! Eu mesma tenho
dias muito líquidos em relação aos meus vizinhos de parede. Se há algo que eles
fazem por mim todos os dias é liquifazer minha opinião ou solidificar a certeza
de que a expectativa só existe pra te frustrar.
É um casal jovem, disse o cara da
imobiliária quando nos contou sobre os vizinhos. Ele com suas pernas de
parêntesis; e ela, com uma cor de pele morena, com traços bem brasileiros. Estão,
ao que tudo indica, do mesmo lado político que eu. Fiquei aliviada, não queria
morar junto a ultraconservadores e estava satisfeita pela possibilidade de
conversas edificantes e profundas. Estar entre os meus iguais! A expectativa,
claro, era iniciar com as conversas informais, que acontecem antes de passarmos
as chaves no portão. Nunca aconteceram.
De tal maneira esse casal se
trancafiou dentro de casa que começamos a criar diversas teorias sobre essa
prisão domiciliar. Mas mesmo não trocando uma palavra, eu acabei descobrindo
muito sobre a vida deles. Esse é o mau das casas geminadas: você não consegue
ter segredos.
Descobri, por exemplo, o gosto
musical bem depressa. Em um domingo às 9h da manhã a mulher começou a cantar samba
em um microfone. O homem tocava o violão. Outro colega tocava bateria. Outro, o
pandeiro. Isso durou até as 22 horas. Foi assim que eu descobri que eles tinham
uma banda. As preferências sexuais, descobertas nas madrugadas e com riqueza de
detalhes, ficam até menos piores quando se compara com essa voz desafinada
cantando ao microfone horas a fio.
E assim eu fui descobrindo as
coisas, de forma involuntária. Não, melhor dizendo, de forma obrigatória. Não
importa se eu não queria descobrir. Eu descobriria de qualquer jeito. Descobri,
por exemplo, que eles usavam drogas diversificadas a qualquer momento do dia ou
da noite, querendo ou não querendo elas invadiam a minha janela como fofoca fresca.
Um dia eu ouvi uma frase que ela soltou
em uma ligação on-line: “refrigerante é um veneno, faz mal, eu nunca tomo”. Aí
eu soube que ela era nutricionista. Às vezes, ela abria um pouco a janela da
frente, pegava seu cinzeiro e fumava quase um maço de cigarro comum, depois
fumava maconha, as olheiras davam pra ver do outro lado da calçada e, julgando
pela rotina da casa em que não se escutava o serviço de cozinha sendo feito,
nem entregadores de comida chegando, pelo tempo que ela passava ali e pela
aparência pouco saudável, a alimentação da nutricionista era de luz. Mas o
importante é que ela não tomava refrigerante!
A preferência política eu também descobri
em uma madrugada, lá pelas 3h da manhã, em um dia de semana, quando ela e alguns
amigos estavam conversando alegremente como adolescentes gritando em um pátio
de colégio enquanto eu tentava dormir para trabalhar no dia seguinte. “Fora,
fulano”. “Fora, ciclano”. E parou por aí.
Qualquer coisa a mais do que essas frases vazias teriam rompido o nível
de profundidade aceitável para ser “descolado”, ou melhor dizendo,
“descontruído”.
É por isso que eu digo, cuidado com o que deseja, você pode conseguir!
Cumprimentei-o finalmente com
minhas mãos de Midas. A garota de traços orientais na padaria? Ah! Claro! Foi
assim que eu descobri que eles eram um casal liberal.
Comentários
Brincadeiras à parte, tô com o Sergio: uma delícia passear pelo seu texto.