RECEITA >> André Ferrer

Dado caminhava pelo parque em uma tarde ensolarada enquanto os fones de ouvido abafavam o mundo ao seu redor. Ao som de Toto, seus pensamentos vagavam. Pensou, de repente, que ainda nutria a sensação de estar à margem de algo maior, algo que nunca conseguia alcançar. Então, procurou se desligar daquela ideia.

Um pouco mais afrente, o gramado onde planejava ler um livro parecia convidativo, mas ele estacou. Seus olhos foram atraídos por uma figura familiar: um homem de cabelos grisalhos, sentado em um banco ao longe, com a postura calma e atenta.

Imediatamente, Dado reconheceu aquele rosto: era o senhor que, muitos anos atrás, havia lhe dado conselhos sobre perseverança em um evento escolar. Seu nome era Lucas. Ele trabalhava como bedel e era um palpiteiro contumaz na época. Muito criança, Dado tinha ficado impressinado porque aquelas palavras soavam como promessas. O sucesso, realmente, seria inevitável.

IMAGEM: ChatGPT

— É só levar a vida a sério — Lucas tinha dito. — Levar a sério o trabalho. Esta é a receita.

Ele puxou os fones. Ficou paralisado. Aquele velho havia se tornado uma espécie de padrão inalcançável. A lembrança infantil, distorcida ao longo dos anos, transformara-se em um peso. Dado analisou a aparência do velho Lucas e depreendeu que era digna, apesar de simples. Logo, o sucesso do homem era evidente em seus gestos confiantes e no semblante tranquilo. Tudo aparentava êxito e condizia com a filosofia apregoada, anos atrás, no páteo da escola. Por isso, Dado sentia-se como uma sombra. Ele não havia conquistado tudo o que sonhara quando criança e, aos 22 anos, a comparação constante com os outros – e consigo mesmo – alimentava um ciclo de insatisfação.

Enquanto decidia o que fazer, ele se acusava de ter negligenciado a tal receita de sucesso. Tanta burrice e perda de tempo! Como poderia encarar alguém que ele via como um símbolo do que não havia conseguido?

Imóvel, Dado sabia que não havia nada a temer, mas o medo da inadequação era maior. Não era apenas o velho à sua frente que o intimidava, mas o reflexo de si mesmo que ele via na comparação. Dado se manteve à distância. Apenas observou.

O velho se levantou do banco. Seguiu lentamente ao mesmo tempo em que alguém se aproximava daquele lado da calçada. Ele usava um terno e caminhava depressa.

Lucas foi de encontro ao transeunte, estendeu a mão e pediu uma ajuda. Então, Dado escutou nitidamente o que o homem do terno disse:

— Eu sou pobre. É só trabalhar, que o senhor fica rico.

O velho Lucas balançou a cabeça, parou e olhou ao redor. Sua maior certeza, naquele momento, parecia pior do que as incertezas do jovem Dado. 

Comentários

Anônimo disse…
que relato triste pra (leia alguns palavrôes). Vc está ficando uma lâmina fina e dolorosa. A noção de fracasso é mto particular, mas a sociedade se encarrega de torná-la pesada de um jeito especial para cada um. E essa mentalidade quacker de que só é fracassado quem quer é uma das coisas mais crueis q a humanidade já criou
Nadia Coldebella disse…
André, adoro como vc é afiado e preciso em dissecar a inconsistência humana. Um mestre. Agora, fiquei pensando em como ver o que viu repercutiu em Dado: aliviou o peso, trouxe culpa, confusão, compaixão? Show de texto!
Albir disse…
A situação desse precursor dos coaches deveria refrear a febre de novos candidatos ao cargo.
Maldito medo da inadequação…

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