SILÊNCIOS DE INVERNO >> Sergio Geia

 


Uma cena. 

Estou na padaria aguardando o café. 

Ele chega de mansinho, aproxima-se do balcão, espera. Não pede nada nem lhe perguntam sobre o que deseja. 

Eu o conheço da praça, já o vi mexendo em lixeiras em busca de latinhas. 

Sempre que cruzo com ele em minhas caminhadas digo bom-dia. No começo não respondia, parecia estranhar tal reverência. 

Então aparece uma moça da padaria e lhe serve um copo de café. 

Ele bebe devagar, em pé, com prazer. 

Vejo que outra moça deixa num canto sobre a mesa alguns produtos como pães, torradas, biscoitos, acondicionados em sacos plásticos transparentes. Ao terminar o café, ele retira do bolso da calça uma sacola plástica de supermercado e guarda com cuidado os produtos ali deixados. 

Tudo ocorre em silêncio, desde a sua chegada, o café, os pães. Parece cena ensaiada, os personagens sabem o que fazer, está tudo marcado, já devem tê-la reproduzido à exaustão, não precisam da fala, há um certo automatismo. 

Embora entenda o que esteja acontecendo, sinto o ambiente frio, quase beliscando o hostil. 

Então ele sai. 

Não olha dos lados, nem pra trás, nem pra ninguém. 

Viro a cabeça para observar: timidamente ele agradece à mocinha do caixa com um leve meneio de cabeça e depois desaparece na claridade da manhã.

 

Ilustração: Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
O Cartier-Bresson teria inveja do seu olhar, meu amigo. Eu tenho.
Anônimo disse…
A vida como ela é, porém, sob o ponto de vista do encantado escritor Sérgio Geia. Brasilino
Soraya Jordão disse…
Lindo. Com que lente vemos o mundo? com que lente nos cegamos?
Zoraya Cesar disse…
De tudo, fica, também, a certeza de que ainda há gente que presta não só atenção, como também auxílio ao mundo. Leveza de crônica bela e triste.
Albir disse…
Enxergar os invisíveis é imprescindível para que algum dia ganhem humanidade.
Nadia Coldebella disse…
Lembrei de uma tese publicada no Instituto de Psicologia da USP que contou a experiencia de um cara que fingiu ser gari da instituição e sentiu-se invisível ( da pra ler a historia rápida aqui: https://www.ip.usp.br/site/noticia/o-homem-torna-se-tudo-ou-nada-conforme-a-educacao-que-recebe-orquidario-cuiaba/). Fico pensando sempre nisso, nessas pessoas que ninguém vê. É um tipo de morte, acho, que relega um ser humano a nem ser reconhecido como tal. Esse seu olhar foi incrível. Mas me senti envergonhada por ele, ele deve se sentir muito mal de estar nessa condição. É muito triste.
Paulo Barguil disse…
Um sensível relato do visível. Fico pensando no que acontece(u) por dentro dos personagens, inclusive do cronista.

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