COMPANHEIRO >> Carla Dias
Desdobra o dito e o coloca no bolso. Seu companheiro disse que bolso serve para guardar papeis importantes. É o primeiro papel importante de sua vida, pensa nisso enquanto desembrulha a bala de caramelo e se demora em desnudá-la e, então, levá-la à boca.
Para ele, fazer bala durar na boca é esticar prazer raro, dulçor de revigorar vontade de continuar. Há dias em que continuar pede mais do que ele tem a oferecer. Seu companheiro insiste na necessidade de não perder a esperança. Ele conheceu uma Esperança, mas ela durou pouco por ali, talvez apenas um sorriso e uma conversa fiada que ele não entendeu, mas o fez rir porque os outros riram e achou aquilo bonito de se ver. Dizem que Esperança se perdeu na vida.
Perder-se na vida é seu medo maior. Seu companheiro diz que ele entende nada de se perder, e prefere que assim continue. Nas noites frias, é ele a cobri-lo com cobertores adquiridos na lábia — sempre fala sobre como é bom em contar uns causos de amolecer coração — e promessas de aquecer coração desabitado de rumo.
Mas isso foi ontem, o hoje está nas mãos da ausência de seu companheiro. Tira o papel do bolso e o lê mais ou menos, porque é criança não conhecedora de palavras escritas. Ainda bem que sabe decorar imagens. Seu companheiro o ensinou os contornos: essa letra fica redonda aqui; tá vendo essa perninha? Nessa é preciso cortar, feito cruz. Mas nunca entendeu a mensagem, pois seu companheiro nunca a leu para ele.
Tira o papel do bolso, olha para ele sem compreender sua importância, mas isso não a diminui. Lembra do olhar agoniado dele ao insistir: se precisar, corre pra lá! Ensinou-lhe o caminho, apontou a cara da fachada, fez com que decorasse nomes de praças e ruas. E definiu prazo: se eu não voltar em dez horas, leve o papel até lá. Um senhor de olhar doce o receberá. Entregue o papel a ele.
Lá era um mistério, mas ele não se preocupava muito com isso. Lá era tema de histórias que o faziam rir e, vez ou outra, sentir o coração miúdo. Lá era o tudo de seu companheiro, mas para ele, o tudo era ali mesmo, ao lado dele.
Contou as horas no relógio do bar em frente. Sentiu fome, o tio do carrinho de churros resolveu o problema. Dez horas depois — era bom na contagem —, juntou suas coisas e seguiu para lá.
Entendeu ao encará-lo. Aquilo de olhar doce o deixava confuso, porque doce era bala de caramelo. O senhor escutou o silêncio dele e aceitou o papel que o menino oferecia. Leu e releu, o olhar nublou e escorreu. Olhou para ele, sorriu. Foi a primeira vez que viu sorriso misturado com lágrimas, e sentiu vontade de perguntar significado, mas seu companheiro tentava ensiná-lo sobre a curiosidade ter de ficar quieta em alguns momentos. Achou que aquele fosse um. Calou-se, mas não por muito tempo.
Senhor, o que tá escrito aí?
Pela primeira vez, palavras o fizeram chorar, mas não de desmoronar. Quando alguém cuida de você, menino, ele se torna companheiro, vivia a dizer. Ele era seu companheiro e vice-versa. Eram a dupla de espantar baratas das calçadas, os super-heróis a resgatarem o jantar para Seu Gogó, morador da esquina da casa das flores.
Foi difícil para o menino aceitar que não o veria mais. Pediu o papel de volta, o senhor o devolveu. Enfiou o papel no bolso, como quem enterra história. Só amansou desespero de ter de conhecer solidão quando o senhor perguntou, a voz mansa e rouca: que tal um leite com caramelo? Meu filho adorava leite com caramelo.
Sem conseguir fazer curiosidade ficar quieta, o menino soltou: dá pra beber bala de caramelo?
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