CADA UM COM SEU UMBIGO>>NÁDIA COLDEBELLA
Ela entrou aos gritos, pisando forte, num misto
de revolta e tristeza.
– Não quero mais ter umbigo, Mário.
O marido, que se arrumava para o futebol, a olhou
inerte, com as meias na mão.
– Quêêêê????
A frase seguinte saiu num gemido lamuriento.
– Não quero mais fazer parte dessa merda toda.
Ele sentou na cama.
– Mas Marina…
Agora ela estava furiosa.
– Olha a sua volta, Mário! O que te faz humano?
Ele pareceu confuso:
– Eu? Humano?
Foi fuzilado pelo olhar da esposa. Encolheu-se.
– Sim, querida. Claro, querida. Sou humano. Claro
que sou humano… quero dizer, que pergunta é essa?
– É o umbigo, Mário! É o umbigo.
Ela tremia e ele começou a ficar preocupado.
Nunca a vira assim.
– Marina, você se sente bem?
Lágrimas rolaram, volumosas, pela sua face e ela o afastou.
– Me deixa Mário! O pior cego é aquele que não quer ver…
Ele a puxou pelo braço, confuso e condescendente.
– Marininha, calma…. senta aqui do meu lado e me explica tudo.
Limpando as lágrimas, ela sentou-se ao lado do esposo, se deixando
abraçar. Acalmou–se estranhamente.
– Se você perder seu dedo polegar, Mário, todo mundo vai saber que
você é um homem, porque seu polegar não é o que te faz humano.
–Não entendo... Preciso do meu polegar. Olhe, como iria fazer isso?
Ele colocou o polegar na ponta do nariz, abriu bem mão e fez uma
careta, imitando um apito. Ela pegou a mão dele, impaciente.
– Se você perder sua mão, Mário, também continua sendo humano.
Mãos são tão importantes…
Ele concordou imediatamente.
– Sim, muito. Eu gosto das minhas.
– Eu vejo como você se importa com suas mãos, Mário. Você as usa
muito.
– Sim. Diariamente. Para muitas coisas.
– Mas se você não as tiver, continua sendo gente.
Ele continuou concordando.
– Sim, amor. Mas eu prefiro ficar com minhas mãos. Será um pouco
desconfortável sem elas. Mas você tem razão.
Ela respirou fundo e continuou a falar com voz esganiçada.
– Pois é. Se você perder uma perna, também não será nada bom.
Ele sibilou.
– Aff! Não vou pensar nisso!
– É. Não seria nada, nada bom...
O tom ameaçador fez o sangue dele gelar.
– Mas você ainda seria gente.
– Sabe o que é? Eu gosto muito das minhas pernas, Marina. Gosto
delas pra jogar futebol. Pra andar. Elas ficam bem em mim. Eu iria sentir
falta. Talvez eu me sentisse menos gente.
Ela ajeitou-se na cama e ergueu a cabeça, sem olhá-lo diretamente.
– Sim, eu sei que suas pernas são importantes para você, até
porque são duas. Mas se você as perdesse, ainda seria gente, não é?
– Sim, eu seria, mas não quero pensar nisso. Minhas pernas estão
bem aqui. Meu polegar e minha mão também.
Ela irritou-se.
– Seu idiota! Mesmo que você perdesse os dois braços, as duas
pernas e o seu pênis, ainda seria um homem!
Ele deu um salto da cama, pondo-se imediatamente de pé, com
as mãos procurando proteger o órgão tão amado. Estava assustado como uma
criança.
– Meu pipi? Ele está quieto aqui! O que ele tem haver com isso?
Ela ficou vermelha e seus olhos pegaram fogo. Percebendo que agora
uma raiva súbita começava aflorar na mulher, ele imediatamente suavizou a voz,
quase produzindo uma melodia e procurou ser condescendente novamente. Melhor
não a contrariar.
– Desculpe, Marininha. Você tem toda razão. É que eu não estou
entendendo porque agora você acha que eu deva perder alguma parte do meu corpo.
Ela começou a balançar o corpo para frente e para trás, em um ato
de puro desespero.
– Não é isso, Mário. Prefiro que você continue com todas as partes
do seu corpo. Gosto dos seus braços e das suas pernas, Mário. Do seu pênis
também. Não tem problema nenhum com ele. Ele até é muito bom. Muito agradável,
por sinal. É que… é que…
Enaltecido e empoderado pelo elogio a sua virilidade, ele
sentou-se novamente ao lado dela.
– Fala amor. Me conta o que te deixou assim.
Houve um momento de silêncio, enquanto ela encarava a janela. O
dia estava lindo, mas a realidade se liquefazia em toda parte.
Então, virou-se e encarou-o diretamente nos olhos, muito pálida.
– É que a Verônica tirou o umbigo.
– Hein?
Então a mulher ficou mais pálida.
– Ela resolveu esticar a barriga, você sabe, ela disse que ia
fazer porque depois dos gêmeos a barriga havia se dividido em três partes e daí
ela esticou tudo, só que o médico, quando foi acertar no lugar, pôs tudo de
volta, mas esqueceu do umbigo e eu a vi hoje no clube sem umbigo. Ela não quis
por de volta. Disse que está feliz assim.
Foi ele quem permaneceu em silêncio. Ela continuou a falar.
– Com certeza, é a coisa mais estranha que vi na minha vida,
Mário. Ela não é mais gente. Nem mamífero ela é, porque mamífero tem umbigo.
Você sabia que a nossa gata tem umbigo, Mário? O umbigo não faz dela gato, faz
dela mamífero, porque mamífero vem antes de ser gato. Mamífero vem antes de ser
pessoa, porque é pelo umbigo que a gente se liga na mãe e agora ela parece não
ter nascido de uma mãe, mas nos bichos o umbigo não aparece, nas pessoas sim. O
umbigo define a pessoa, Mário.
O homem balançou a cabeça, tentando assimilar o que a esposa lhe
dizia.
– Ela parece tão etérea agora, Mário. Não parece desse mundo. Não
tem mais parte com toda essa podridão. Nem humana ela é.
Ela levantou a blusa.
– Olha aqui, Mário. O que isso parece?
Ele pensou um pouco.
– Seu umbigo, amor.
– E o que isso faz de mim?
– Humana?
– Não!
– Mamífera?
– Não! Me faz ser parte dessa porcaria toda que esse mundo virou.
Não quero fazer parte disso, Mário! Quero tirar meu umbigo!
Ela jogou-se na cama em pranto solto e soluçante. Mas dessa vez
ele não a abraçou. Estava perplexo demais e atrasado para o futebol. Mais
tarde, o Joca o encontrou sentado, num canto, cabisbaixo, muito sério.
– Que que houve, cara? Porque não apareceu no jogo?
– Não quero mais fazer parte dessa merda toda, cara. Quero tirar
meu umbigo.
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