A MARIQUINHA >> MÁRIO BAGGIO

 


        A Mariquinha saiu de casa com seu colorido guarda-chuva aberto, tinha garoa e o vento ia e vinha pelas esquinas, levantando saias, abrindo janelas, batendo portas. Todos a viram quando caminhava pulando poças d’água e estendendo o braço para sentir se a chuva tinha mesmo parado. Não tinha.

 

— Para onde vai a Mariquinha? — todos se perguntavam, olhando a figura estranha que, mais do que andar, desfilava pelas calçadas.

 

Inquieta, que parecia ter bicho-carpinteiro, a Mariquinha queria estar em todas as partes. Semeava pássaros no jardim de sua casa e deixava escritos pequenos versos no coração de cada folha. Gostava de pensar que era um peixe voador dançarino e estava dentro de um gigantesco aquário. Seu pai, que tinha um comércio no centro, virava as costas para não ver o desfile da Mariquinha. Tinha vergonha daquela cena. A mãe, o mesmo: fechava a cortina e ia cuidar da vida.

 

Na sua idade adolescente, as portas da percepção se abriam todas para a Mariquinha e em todas ela fuçava. Não cabia em si de tanta curiosidade. Tinha o espírito livre, a porção transparente de si que se escancarava para o mundo, como seu colorido guarda-chuva, aberto debaixo da garoa fraquinha. Costumava caminhar morrendo de rir, certa de que no pé do horizonte havia um pote de ouro. Gostava de rezar e pedia sempre por mais tempo, mais vida, porque lhe faltavam muitos livros para ler e umas tantas risadas para dar. Conversava sozinha, porque a melhor conversa que existe é aquela que se tem consigo: não há risco de desentendimento.

 

— Ali vai a Mariquinha. Sou sua professora. Eu lhe ensinei o abecedário e a tabuada — comentou dona Amélia, entrando no açougue de seu Aurélio para pedir um quilo de picanha defumada.

 

“Ei, Mariquinha, passa lá em casa que te mostro uma coisa”, havia sempre um moleque que gritava quando a via passar pela rua. E não é que aquele moleque quisesse a visita da Mariquinha, não era isso. Dizia por dizer, porque com a Mariquinha todos se comportavam assim: fingiam simpatia, mas era deboche. Era gozação. Ela não se importava e ria. Quem sabe ela não passava lá uma hora dessas mesmo? Só para ver o que aquele moleque queria mostrar.

 

— Aquela é a Mariquinha. Sou sua professora. Mas gosto mais de chamar ela de Carlos Eduardo — dona Amélia balançou a cabeça em desaprovação, segurando sua peça de picanha defumada bem firme debaixo do braço.

 

A Mariquinha seguia passeando com seu colorido guarda-chuva aberto, mesmo sem chuva, rindo, feliz da vida.

 

Imagem: Bobby Padilla

 

Comentários

Jander Minesso disse…
Que sorte tem a Mariquinha, de conseguir ser quem é apesar do entorno. Se bem que talvez seja coragem e não sorte.
Zoraya Cesar disse…
"Costumava caminhar morrendo de rir, certa de que no pé do horizonte havia um pote de ouro." Que coisa linda. E que história que mistura a alegria em se reconhecer e não olhar em volta com a tristeza de não ser aceito por ser quem é. A imagem da Mariquinha (só no final, aliás, QUE FINAL, HEIN? PUTZ!, só no final entendi o trocadilho com o nome. Sen-sa-cio-nal) com seu guarda-chuva colorido sob a chuva nao me sai da cabeça. E me alegra o coração.
Albir disse…
Tomara que sobreviva em meio às hostilidades. Pai e mãe envergonhados, colegas debochados e professora que a chama de Carlos Eduardo! Espero que o tempo melhore pra ela.
Paulo Barguil disse…
O desafio de sair de casa e descobrir-se no mundo... Lindo texto.
E a maior das hipocrisias é que muitos desses que debocham, desejam Marquinha. Adorei.
Nadia Coldebella disse…
Feliz é a Mariquinha que encontrou a própria verdade e vive por ela!

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