TABULEIROS >> JANDER MINESSO

 

Na minha infância, as sextas-feiras à noite eram um momento mágico. Meu pai comprava presunto, queijo e pão de forma, além de fatiar alguns tomates. Com esse arsenal, o patriarca preparava lanches quentes para a família num tostex, sempre tomando o cuidado de tirar com a faca a bundinha do Pão Pullman, que vinha torrada de fábrica. Além disso, as noites de sexta também marcavam o primeiro momento do final de semana em que estava liberado o consumo irrestrito de refrigerante em todo o território da nossa casa.

Uma criança não tinha como querer mais do que aquilo. Só que tinha mais. Depois do jantar, era comum que meu pai, meu irmão do meio e eu nos reuníssemos na sala, às vezes acompanhados também pela minha mãe e meu irmão mais velho. Espremidos em volta da mesinha de centro, passávamos umas boas horas entretidos com algum jogo de tabuleiro. Normalmente, escolhíamos o clássico Jogo da Vida, que cumpriu muito bem seu papel de me explicar o que é de fato a vida: uma estrada cheia de eventos aleatórios sobre os quais você não tem o menor controle, percorrida por gente que só quer ficar rica e se aposentar o quanto antes.

Apesar de toda a diversão e aprendizado proporcionados pelo Jogo da Vida, meu favorito era o Super Master: um desafio de perguntas e respostas, onde vencia o primeiro a juntar as fichinhas de oito cores diferentes, cada uma relacionada a uma área diferente do conhecimento. Sendo eu o mais novo, meu pai e meu irmão sempre davam aquela colher de chá. E graças às ajudinhas, descobri onde ficava o Mar Mediterrâneo; aprendi o que era show business; e peguei raiva da fichinha roxa, que você só ganhava quando acertava uma pergunta de Política Nacional, Política Internacional ou Imprensa Escrita. Inclusive, eu sempre respondia “PMDB” quando não entendia direito a pergunta. “Filho: que nome se dá ao organismo incapaz de subsistir por meios próprios, cujo metabolismo depende de outro organismo por ele explorado?” E eu: “PMDB.” Não sei se era inocência ou precocidade.

Os anos passaram e, já adolescente, troquei os tabuleiros por outra paixão nerd: o RPG. Essa relação de amor durou mais ou menos uma década e foi tão boa que merece até uma crônica à parte, mas não vou me estender agora por compaixão ao leitor. Por ora basta saber que, com vinte e tantos anos, decidi que não podia mais perder tempo com essas brincadeiras de criança.

Foi com esse senso de maturidade que abandonei os RPGs e fui jogar videogame. Bem adultão. Em minha defesa, posso dizer que também sou fã de videogames desde pequeno, quando meu pai só nos deixava montar o Atari nas férias e olhe lá. Não é de espantar que agora, com mais de quatro décadas nas costas, eu fique horas com o Nintendo Switch nas mãos e chore quando termino um jogo bonito. E se você está achando um exagero da minha parte, vai lá jogar Celeste e depois a gente conversa.

Mas se sou um entusiasta dos jogos eletrônicos, o mesmo não pode ser dito da minha cara-metade. Ela só gosta de Sonic e, depois de três minutos jogando, já quer arremessar o controle pela janela. Por isso, com o advento da pandemia em 2020, videogame não era uma opção de entretenimento para o casal. Confortavelmente trancados em casa enquanto o mundo desabava, só nos restava engolir o catálogo da Netflix sem mastigar.

Não demorou para que o tédio batesse à porta. E foi aí que lembrei daqueles joguinhos que tanto bem me fizeram na infância. Sabendo que o Google oferece erudição instantânea, lancei na barra de pesquisas o termo jogos de tabuleiro, na esperança de achar um lugar que vendesse um Super Master da vida a preços módicos. Mal sabia eu que estava me enfiando num buraco sem fundo. Dez minutos de pesquisa me fizeram entender que havia muitas opções de jogos hoje em dia, boa parte deles premiados mundo afora. Havia sites especializados e podcasts sobre o assunto, sem contar que existiam mais joguinhos no mercado do que estrelas no Universo. Eu poderia passear de trem pelo continente europeu; poderia fundar a capital da civilização asteca; poderia até azulejar um castelo português se me desse vontade. Foi perdido nesse mar de opções que me muni de coragem e comprei um tal de Ticket to Ride: Europa (o tal joguinho de passear de trem).

Recebi o pacote dias depois e, emocionado, tirei o bicho da embalagem. Era a coisa mais linda. Um mapa meio envelhecido da Europa no início do século XX servia de tabuleiro. Cartas com uma arte espetacular apontavam quais rotas poderíamos completar. E um punhado de trenzinhos coloridos iam preenchendo o mapa conforme a partida avançava e nós cortávamos o caminho do adversário, criando uma animosidade ótima. Sendo minha esposa uma criatura quase nada competitiva, temi pela integridade do meu relacionamento. Mas por mérito dela ou incompetência minha, perdi de lavada as primeiras partidas do jogo, o que a deixou bastante satisfeita e transformou o Ticket to Ride em um dos nossos favoritos.

De lá para cá, ela e eu já construímos cidades medievais no sul da França; viramos aprendizes de um grande pintor japonês; e levamos vários bichos para beber água no maior lago artificial do mundo. Em plena pandemia, os jogos viraram uma alternativa maravilhosa de entretenimento e me levaram de volta às inesquecíveis sextas-feiras da infância. Em alguns momentos eu chegava a sentir o cheiro do misto quente.

Dali em diante, a coisa só melhorou. Conforme a pandemia arrefeceu, convidei alguns amigos para umas partidas aqui em casa. Primeiro um, depois outro… Hoje, me reúno sempre que o trabalho permite para jogar com os amigos. Às vezes, levo uma caixinha comigo até o trabalho para espalhar a palavra da jogatina e converter novos iniciados à causa. E minha esposa continua sendo uma das companhias mais fantásticas à mesa, com um jeito muito especial de demonstrar seu afeto. Certa vez, por exemplo, o mozão olhou bem nos olhinhos de um amigo meu e desejou que ele sofresse uma combustão espontânea. Até o momento não aconteceu nada com ele, mas nunca se sabe.

Além das sessões de jogo, também sou um dos felizes apoiadores de um excelente podcast sobre esse universo; leio tudo que aparece sobre o tema; e tenho uma coleção de jogos que é muito maior do que precisava ser. Até porque meu erê precisa de um hobby, oras. E mesmo que eu não beba mais refrigerante e evite o presunto, é só botar um joguinho na mesa que eu volto para 1989 na mesma hora. Pode parecer bobeira para quem vê de fora, mas o que estou tentando dizer é que a coisa é maior do que o jogo em si. No fundo, o que me fascina de verdade são os laços inevitáveis que acabamos fazendo com quem está ao nosso lado cada vez que uma partida começa. Nós rimos juntos, tramamos uns contra os outros e, mais do que tudo, criamos pequenas histórias que serão lembradas tempos depois, iguaizinhas às histórias que vivi com minha família ao redor da mesa de centro da sala.

E acreditem: os joguinhos têm mesmo o poder de reunir todo tipo de gente. Conheço grupos em que avós, pais e filhos jogam juntos em pé de igualdade. Existem opções para casais solitários e também para multidões de amigos. E também não faltam alternativas rápidas, demoradas, fáceis, difíceis, baratas ou caríssimas. Tô para ver uma forma de entretenimento mais democrática. A única coisa que me dá um certo receio quando falo do assunto é virar o traficante de drogas ou o doutrinador chato, do tipo que fica tentando convencer todo mundo a gostar daquilo que ele gosta. Então, perdoem a insistência. Mas se algum leitor animar, vem de inbox que a gente arma uma partidinha. A primeira é por minha conta.

Imagem: acervo pessoal

Comentários

Cleber disse…
Ah, Jandeco… pra variar, me fizeste chorar com as lembranças.
Foram vários aprendizados… esperar a vez para saborear seu tostex, esperar o final de semana que nos permitia a farra do refri ou as férias para o Atari.
Talvez minha ansiedade adulta venha daí, mas tratarei em terapia rs…

Melhor ainda é saber que participei e faço parte das suas memórias além do The Cure, meu amado, admirado, invejado (alvamente, se é que me entende) e carinhoso irmão.

Beijo no seu coração!
Soraya Jordão disse…
Trabalhei por 30 anos com crianças. Voltei naquela alegria. Jogávamos de tudo. Jogo da vida, Monopoly, Detetive, Senha, Jenga, War, Desafio e por aí vai. Bom demais lembrar com
Amor.
Lady Killer disse…
Puxa Jander, seu relato crônica memorialismo, enfim, essa lindeza toda me emocionou da primeira à última linha, com breves paradas para rir com sorriso feliz. Mas o que eu gostei, gostei, gostei mesmo, foi da lembrança tão delicada do misto quente das 6as feiras. Só qd a gente cresce é q percebe o quanto esses pequenos momentos são tão tão importantes. Muito obrigada por compartilhar. Mande lembranças ao seu Erê. ele merece.
Nadia Coldebella disse…
Nossa, adorei. Foi meio que uma retomada da minha infância. Eu e minha irmã jogavamos por hora. Era a nossa disputa inconsciente para ver quem era a melhor. Eu, claro.
Eu não tenho a menor paciência para jogar jogos eletrônicos, me desanima rápido, mas não me coloque em jogos de tabuleiro ou cartas, sou extremamente competitiva. Não sou nada legal - desde que não valha dinheiro, aí nem jogo.
Mas juro, depois de ler sua crônica, acho que vou resgatar umas jogatinas do passado e talvez me esforce para me tornar uma pessoa melhor. Talvez.

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