IDOSOS >> Ana Raja


 Ser idoso não descarta experiências nem pecados.

Segundo dados do IBGE, a população acima de 60 anos, em 2023, chegou a 33 milhões de pessoas. Conforme os estudos, esse número vem aumentando por causa dos avanços da medicina.

Conclusão: vamos conviver por um período maior com os idosos e consequentemente cada um de nós ocupará o posto de ancião por mais tempo. 

Tenho prestado atenção na insistência em infantilizar nossos velhos. É comum ouvirmos se referirem a eles como coitadinhos, bonitinhos, bonzinhos e até se valer de um cutecute, fofo mesmo, daqueles de quando apertamos a bochecha de uma criança. Particularmente, isso me incomoda. Primeiro: essas pessoas não são mais crianças, já viveram boa parte de suas vidas, acumulam experiências fundamentais e infantilizá-las é ofensivo. Segundo: qual a certeza de que um dia elas tenham sido coitadinhas, boazinhas e outros diminutivos aprazíveis aos nossos ouvidos? 

Tenho a impressão de que foi determinada uma idade possível de habilitar o esquecimento de alguns idosos sobre decisões perversas de um passado recente. É como se houvesse um departamento, onde pudessem emitir esse “esquecimento” ao apresentar os documentos necessários para que, em poucos minutos, tenham sua vida transformada: habilitação em papel couche de gramatura 90, de cor azul claro, timbrado e assinado pelo responsável.   

Quem é o responsável?

Imagino o tamanho dessa fila e a alegria estampada nos rostos marcados de rugas, acertos e erros.  

Espantei-me ao ler uma postagem de um senhor de 80 anos sobre a celebração de 50 anos de casado. Ele agradecia todos os anos em que a esposa o fez extremante feliz, falava sobre quando a conheceu, “uma menina linda, de quem fui o único homem”; sobre a família maravilhosa que construiu, um tanto de filhos, netos e bisnetos. O agradecimento mais “retumbante” foi “reconheço o esforço para me tornar o homem que me tornei, assim, agradeço a mim por tudo”. 

O meu espanto vem de eu conhecer a história de fato. 

Não raro, a esposa acaba no hospital, culpa da artrose, da miopia, da escada.

Pariu cinco filhos, o sexto era o mais sonhado e não veio. Não passou pelo crivo de boa parideira.  Talvez por isso, os outros três filhos tenham sido terceirizados.

A vaidade foi sufocada por um espelho embaçado que a persegue desde a primeira noite de casada, apesar de suas curvas serem elogiadas por muitos.

Considerada péssima cozinheira, nunca teve talento para fazer os quitutes que ele tanto ama, embora as suas iguarias fossem disputadas pelos restaurantes do bairro.

Por essas e outras, e lendo os comentários de admiração na postagem, concluí que ele recebeu a tal habilitação isentadora de violência, o que o transformou em um príncipe... na cabeça dele e de seus seguidores.

Ser idoso não descarta pecados nem experiências.

anaraja.com.br

Comentários

Jander Minesso disse…
Bela e necessária reflexão, Ana. Acho que muitos de nós já vimos algo parecido. Se não pela redenção da idade, pelo menos pela redenção do fim. E para algumas coisas, não dá para passar pano.
Soraya Jordão disse…
Além de um escrita bordada de sensibilidade e perspicácia, eu admiro essa sua coragem de falar de temas espinhosos. Te admiro demais! Linda crônica.
Sandra disse…
Reflexão muito necessária e um texto maravilhoso, Ana!
Zoraya Cesar disse…
Que interessante, Ana! A gente começa pensando q vc vai fazer uma reflexão sobre como a sociedade trata os idosos, de como os idosos se veem, de como seremos nós qd formos idosos e eis q pá! vc pula num recorte muito particular para a vida em segredo de que, assim como a morte costuma santificar o falecido, tendemos a romantizar o velhinho. E nada mais longe da verdade. Legal demais!
Nadia Coldebella disse…
Apesar das vulnerabilidades presentes em cada ponta da existência, que justificam um certo cuidado e uma maior tolerância, o fato é que existe, nas pessoas, um medo caótico de envelhecer. Envelhecer o corpo físico, no caso, porque hj em dia, pra alma, muito pouca gente parece ligar.

Nessa tentativa de negar o óbvio que tem profundidade de sete palmos, infantilizar o velho é um grito desesperado e estúpido de se obter algum controle. Mas controle é ilusão, eu sempre digo.

E nessa vida, nada se apaga. Muitos pesos só serão sentidos na hora derradeira. Feliz de quem tem a sorte deixa-los enqto caminha!

Crônica mais que necessária! Muito obrigada!

Postagens mais visitadas