A LENDA DE COYOTE JACKSON E A LEI DO ETERNO RETORNO >> Zoraya Cesar






Ele sentia aquela coisa viscosa e quente se espalhando por seu corpo, e uma queimação intensa, tão intensa, que nem gritar conseguia.

Sua vida estava escoando para fora de suas veias e ele nada podia fazer, a não ser... 

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Coyote Jackson e Rufian eram bandidos. Roubos e assaltos, sua especialidade. Trocas de tiros com os agentes da lei, bebedeiras, jogatinas e mulheres, sua maior diversão. Eram os melhores amigos, irmanados naquela cumplicidade que os fora da lei têm de ter para sobreviver a mais um dia.

Mais um dia. E depois outro. E chegou aquele em que Coyote Jackson se apaixonou.

Ela era simples e adorável, cheirava a flor de cravo e massa fresca de pão. Tinha longos cabelos negros e olhos cor de avelã, um sorriso gentil e uma voz angelical.

Coyote Jackson aposentou o coldre, dividiu o dinheiro com o amigo e fugiu para a fronteira, onde ninguém o conhecia. Poderia ter uma nova vida. Uma família. Faria qualquer coisa por sua amada.

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Alguns meses se passaram. Do nada, Coyote Jackson sentiu-se intranquilo, por algo que não sabia explicar, e nem queria. Acostumado a seguir seus instintos, resolveu era hora de partirem mais uma vez.

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A noite chegou e, com ela, um vento sinistro, gelado, que se insinuava impiedosamente pelas frestas da cabana. O cavalo bufava, agoniado. Uma coruja rasga mortalha piou seu canto agourento. Coyote Jack gritou para sua amada se esconder, pegou seu revólver, seu rifle Sharp e...

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E deixou-o cair no chão ao receber o primeiro tiro nas costas. Claro. Ninguém arriscaria a vida trocando tiros com aquele que fora um dos mais temidos pistoleiros da época.

Um tiro no escuro. Dois tiros. Três.

Ele tentou reagir, mas o quarto tiro o jogou no chão, imóvel, ofegante, o corpo em fogo.

Ainda assim, quando viu sua amada sendo arrastada pelos cabelos, a roupa já rasgada pelo homem, teve forças para levantar o revólver e atirar.

Acertou-lhe apenas uma parte do rosto, deixando uma massa de sangue, ossos, olho pendurado. Uivando de dor, o homem atirou na mulher e, virando-se, também mais uma vez em Coyote Jackson.

Então, tudo ficou escuro.

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Crianças fugiam histéricas. Mulheres desmaiavam. Homens baixavam a cabeça, para não parecerem desrespeitosos.

Porque aquele não era um homem qualquer.

Pistoleiro, maus bofes, amargo e vingativo. O terror o acompanhava.

Metade de seu rosto tinha a aparência de uma carne malpassada. Uma cicatriz negra recobria o buraco onde deveria haver um olho. Parte de sua boca lacerada deixava à mostra alguns dentes.

Era rico. Tinha um rancho. Homens a seu serviço. Gado. Mulheres aos montes, trazidas de prostíbulos das cidades vizinhas.

E, no entanto, Rufian andava mais desassossegado e raivoso que o normal. Mulheres não o satisfaziam. A bebida não fazia efeito. Deixava os negócios ao léu. Não dormia o sono dos justos.

Seus pesadelos eram aterradores, tanto mais porque extremamente reais.

Via-se numa gruta incandescente, dentro da qual era cozido lentamente. Despertava coberto de suor, o corpo vermelho e quente. Ou uma sereia, com o rosto da mulher a quem sempre desejara possuir, puxava-o para uma lagoa sem fundo; acordava com falta de ar, espirrando água pelo nariz. Mas o mais terrível era o sonho em que ele via, sentia, cheirava a presença de seu amigo Coyote Jackson e seus olhos verdes a encará-lo. Seus lábios se mexiam silenciosamente e Rufian não conseguia entender o que falavam. Levantava-se aos gritos, a arma na mão, pronto a atirar.

Sua face foi se tornando tão mais demoníaca, que seus empregados o abandonaram e as prostitutas preferiam a morte a ir ter com ele.

Ele ficou sozinho com os pesadelos.

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Chamou um curandeiro da região, famoso por exorcizar espíritos.

O homem nem passou da soleira da porta.

- Não posso mudar destinos já traçados. Não precisa pagar pela visita. É sempre um prazer ver o outro mundo fazer justiça.

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Atrás de uma rocha, um homem de tocaia e seu longo rifle esperavam.

Fazia frio, mas ele não tiritava. Estava escuro, mas ele enxergava muito bem. Serpentes e escorpiões se aproximavam, mas logo fugiam, como se perseguidos por seu pior predador. Um coiote se achegou, farejou, uivou longamente e ficou por ali, ganindo baixinho. Logo outros lamentos se espalharam pela noite, numa sinfonia lúgrube e bela.

Rufian fumava, de um lado para outro. Decidira que venderia tudo e mudaria para a cidade grande. Talvez até fizesse uma plástica.

A sinfonia de uivos e lamentos parecia sair das paredes da casa. Desesperado, ajoelhou-se e implorou aos céus por misericórdia, prometeu doar parte de seu dinheiro para a caridade, viraria crente.

Apaziguado por sua própria determinação, presunçoso de que dominara a situação, foi para o descampado desafiar sua nêmesis.

O homem saiu de trás da pedra. Caminhou lentamente em direção a Rufian, que, ao vê-lo, sacou e atirou. Atirou. Atirou. Mas sua pontaria talvez já não fosse a dos áureos tempos. Porque o homem não parou.

Aquele andar confiante, o jeito de levar os coldres na cintura, a maneira de segurar o rifle... era um Sharp? Impossível! Ele estava morto. Morto! Ele mesmo, Rufian atirara nele e o vira sangrar até morrer.

Rufian virou as costas e correu, desabalado.

Uma bala nas costas interrompeu sua tentativa de fuga para o lugar nenhum. Pois dali não escaparia. Nem vivo nem morto. Suas preces de nada valeram.

Caído, a dor e o medo tomando suas entranhas mais rápido que o sangue se esvaindo, ouviu o som de esporas no cascalho.

Uma mão forte o arrastou para o deserto, insensível aos seus gritos.

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Bolas de feno dançavam ao vento ululante. Sob a lua, um homem de olhos verdes tirou uma faca Bowie do bolso, agachou-se e começou, lentamente, a escalpelar um outro homem, que se contorcia de pavor, deitado na areia gelada.

A Bowie esfolou meticulosamente o corpo todo de Rufian.

Só o silêncio e o som de pele sendo arrancada do corpo respondiam a seus gritos horripilantes que se espalhavam pela noite.

Não adiantaram as súplicas, desculpas, ameaças, promessas. O homem de olhos verdes continuava, imperturbável, sua vingança tétrica contra o amigo que o traíra por dinheiro e matara sua amada por luxúria.

Ao terminar, jogou os restos trêmulos e ainda agonizantes em carne viva do traidor aos coiotes e abutres.

E partiu, desaparecendo lentamente enquanto um sol vermelho inferno surgia de trás das montanhas negras.

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Conta-se que, até hoje, traidores acabam por encontrar um homem alto, de olhos verdes, agachado junto a uma fogueira, amolando uma faca Bowie e, tendo, a seu lado, um rifle Sharp. E que esse é, também, o último momento de suas vidas.

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Esse conto foi livremente inspirado em duas músicas do meu grupo de Dark Country preferido, o The Heavy Horses: Mexican Valley e Hell Awaits

Vale a pena ler sobre a mítica faca Bowie e outro ícone do Velho Oeste,  o rifle Sharp

Faca Bowie https://pt.wikipedia.org/wiki/Faca_Bowie#/media/Ficheiro:Bowie_Knife_by_Tim_Lively_16.jpg

Rifle Sharp
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rifle_Sharps

Coruja rasga mortalha ou suindara
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tyto_furcata.jpg
LubosHouska, CC0, via Wikimedia Commons

Comentários

branco disse…
Muito bom. Me fez lembrar os tempos em que, junto com meu pai, lia "B" books, um verdadeiro novo de imagens , como eu escrevi... boas lembranças de Miguel Cucho Santillans, só que melhor.
Melhor até que excelente!
PS.: Bem pensado o termo " bolas de feno"
Soraya Jordão disse…
De arrepiar. Tantos as imagens quanto o ritmo.
Marcio disse…
Dizem que a vingança é um prato que se come frio.
A frase pode causar o maior impacto, mas o gosto de tal prato deve ficar horrível, depois de esfriar.
Por que motivos esses poderes sobrenaturais de Coyote Jackson não tiveram a misericórdia de se manifestar antes que ele fosse morto por Rufian?
Jander Minesso disse…
Caraaaaalho… tem horas que só um palavrão expressa o que a gente sente. Essa cena do esfolamento foi de arrepiar real. E mais vez você me lembrou das HQs que eu roubadas do meu irmão, Zoraya. Só que dessa vez foi um misto de Tex com Hellblazer. Muito bom!
Clara Braga disse…
Acho que não vou conseguir dormir essa noite! Socorro!
Érica disse…
Eita... E quando a gente pensa que não dá mais pra diversificar, lá vem ela com uma história diferente de todas as outras... Vai ter imaginação assim lá em Copacabana kkk
Zoraya Cesar disse…
branco - já fui procurar no estante virtual e achei. vou comprar.

Soraya - obrigada! então, atingi meu objetivo!

Márcio - hahaha, mas olhe, esses poderes só sobrevieram após a morte dele, nao antes. Esses poderes do Além são mto estranhos.

Jander - aaaaahhmei seu palavrão. Disse tudo, muito obrigada! Tex eu lia, pouco, mas li. Amo cowboys, tenho uma coleção de Zane Grey!

Clara - já disse o qto me senti honrada de vc ter arranjado tempo pra me ler e comentar.
Ainda assim... sinceramente? Espero q vc tenha ficado impressionada a ponto de custar um pouquinho só a dormir kkkkk

Erica - surpreender é sempre bom! Mas quero ter imaginação assim em todo lugar. E dessa vez vc nao reclamou da violência. Acho q estou te contaminando...

Muito obrigada, de verdade, de coração, a todos, pela leitura e comentários generosos
Anônimo disse…
Belo e sensorial texto. Imagens e metáforas a serviço da narrativa. É isso aí! Quando sobram metáforas chamam de prosa poética. Há quem goste. Se tem narrativa, tudo tem que tabalhar para a narrativa ou enfraquece. O que não é o seu caso. Todas as peças construindo a história. Primor. Curiosidade: dizem que o David feriu aquele olho com uma Bowie. André Ferrer aqui.
Nadia Coldebella disse…
Foi por isso que te chamei de Lady Killer e sempre digo que vc é mestra na vingança justiceira.

Não sei nem o que dizer, é um texto magistral. Imaginei ele sendo esfolado vivo num deserto de céu vermelho... Seu texto evoca muitas imagens fortes, mas também a sensação iminente da justiça desejada diante das piores traições.

Sensacional!!!

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