QUANTO VALE UMA CERTEZA? >> Soraya Jordão


As férias em Santo Amaro prometiam ser uma experiência de prazer e exuberância. Afinal, os lençóis maranhenses são, por si só, uma ostentação caprichosa do criador. Certa de encontrar a perfeição e poder desmistificar esse papo de que o paraíso não existe, peguei o avião. Cheguei ao destino com todo o roteiro estudado e programado, conforme orientação dos viajantes mais experientes. Tudo para ser perfeito. 

A pousada era boa, o chuveiro nem tanto, mas relevei para não colocar o paraíso em um patamar inalcançável.   A agência de turismo e os guias estavam à altura das expectativas. Na visita às primeiras lagoas, fui tomada por uma conexão estreita com Eva. Não andava nua por ali, mas tocava com os pés e os olhos o Éden. Um visual capaz de inaugurar a fé em Deus em  qualquer descrente. E olha que ainda faltava o encontro com a “cereja do bolo” ou, no caso, “a maçã” das dunas: a cobiçada Lagoa das Emendadas e o seu pôr do sol. Esse era o único passeio que exigia caminhada de uma hora para chegar ao destino-clímax da temporada e a última etapa para decretar o paraíso como algo tangível. No dia da proclamação,  percebi o primeiro sinal de inconsistência do projeto “ O paraíso é real.” O tempo estava completamente fechado.  Cheguei a pensar: quem disse que tem que ter sol no esplendor? Depois lembrei que a questão não era só a beleza arrebatadora promovida pelo momento em que o sol cansa de aparecer e se esconde no horizonte do mar, seu reflexo pincela de dourado as lagoas e, sim, isso é pré-requisito à perfeição necessária ao paraíso. Contudo, o tempo ainda podia abrir, disseram os nativos. Menos mal! Porém me deparei com o segundo sinal do apocalipse: uma dor intensa no pé por conta de uma súbita tendinite. Ainda sem poder acreditar, me aprontei para o passeio como se pudesse prescindir do corpo para fazê-lo. Mal podia pisar no chão, mas continuava passando filtro, arrumando a mochila…Nada nem ninguém barraria meu acesso ao imensurável.

Triste ingenuidade. Não consegui subir na caminhonete que conduziria ao passeio. Convencida da minha insignificância diante do poderio do corpo e do fato de que havendo paraíso esse não era para mim, voltei para o quarto. Nesse momento, outra questão existencial me abateu: como lidar com  as birras que a vida faz só para nos provar que ninguém está no controle? Como aceitar que eu tinha  sido a escolhida, pelo destino, para não realizar o desejo essencial? Não que eu quisesse largar o fardo no colo do outro, mas por que tinha que ser eu? Talvez a vida seja como uma roleta russa.  Bum! Azar daquele que passa na hora que ela aperta o gatilho. Ou quem sabe a vida seja exatamente essa miscelânea de acontecimentos, sem culpas ou culpados. Apenas fatos e a gente é que adora reclamar.

Confesso que levei um tempo mastigando umas revoltas, triturando umas culpas, engolindo uns porquês, até soltar um arroto de alívio e esperança, e aceitar que o não vivido também conta uma história. 

Eu sou aquela que não foi à Lagoa das Emendadas e, exatamente por isso, descobriu que o paraíso possível é interior e privativo. Revela-se toda vez que ajeitamos as coisas dentro de nós e seguimos em frente, ainda que por caminhos tortuosos e não planejados.

O mais curioso é que, em cada lagoa visitada, ao sair, eu me despedia com mergulho e palavras de agradecimento ao Criador e a toda a criação. Olhava a paisagem, detalhadamente, na tentativa de esculpir aquele visual paradisíaco na lembrança. Ao entrar no carro, pulsava aquela dor típica de quem viveu o para sempre por algumas horas. 

A cada passeio, o mesmo ritual de despedida. Só agora me dei conta que talvez não tenha sido a última vez. Pode ser que eu volte para conhecer as Emendadas. Quem sabe?

Pode ser que não. Lidar com a falta, a frustração, o azar ou a impossibilidade é uma área nobre no espaço do paraíso.

O não vivido é o vivido de outra coisa em seu lugar. Está valendo! Chega de enaltecer o que podia ter sido. Agarro com força o que se ofereceu à concretização e festejo: as férias foram sensacionais!

Maravilhoso é tudo o que conseguimos realizar.

 

Comentários

Jander Minesso disse…
“O não vivido é o vivido de outra coisa em seu lugar.” Ler isso em plena viagem de férias foi um remédio contra a ansiedade que estava me jantando por dentro. Obrigado!
Ana Raja disse…
Que lindeza de crônica! Às vezes o não vivido conta uma história bem mais interessante! Sempre bom te ler, Soraya!
Soraya Jordão disse…
Que prazer saber que minhas palavras encontram tão boas moradas. Obrigada, Jander e Ana Raja.
Zoraya Cesar disse…
"O não vivido é o vivido de outra coisa em seu lugar. " sábias palavras! a nossa ansiedade às vezes solapa nosso poder de afeição ao que a vida traz. Deixar a vida nos levar torna nossas malas e baús mais leves, e nos prepara para a próxima. E ainda por cima viajamos junto com vc nessas férias especiais!
Soraya Jordão disse…
Obrigada, Zoraya! 🌻😍🌻
Nadia Coldebella disse…
"Como aceitar que eu tinha sido a escolhida, pelo destino, para não realizar o desejo essencial?".
É uma frustração bem ruim de carregar, uma especie de loteria ao contrario. Por outro lado, o paraíso é paraíso porque não é real. Vou dar uma de Poliana aqui e jogar o jogo do contente, acreditando que na próxima vez o ápice do paraíso se abra pra vc.
Ah, e gostei muito das suas reflexões, da possibilidade de viver mesmo não tendo vivido.

Um grande abraço!

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