ZÉ BOBO >> JANDER MINESSO
O pessoal dizia que a esposa do Zé morreu afogada em uma represa. Por isso que toda a vizinhança deixava o portão trancado. Senão ele entrava, abria a primeira torneira à vista e deixava a água escorrer na esperança de que a companheira voltasse.
Ninguém tinha certeza se esse afogamento aconteceu de verdade, mas era uma boa história. Triste, mas boa. E, tirando o problema das torneiras, o Zé era um cara fácil de lidar. Andava meio maltrapilho, arrastava a perna esquerda e tinha dificuldade de articular as palavras, mas era um bom sujeito. Sempre tirava o boné e oferecia um sorriso quando cruzava com as pessoas. Por tudo isso, a alcunha de Zé Bobo (pela qual o bairro o conhecia) soava um tanto maldosa.
Claro que poucos tinham crueldade suficiente para chamá-lo assim na cara dura. Os mais polidos só respondiam ao aceno de boné com um “bom dia, Zé!” meio amarelo para cumprir tabela. Mas as crianças eram mais sacanas. Elas se juntavam em bando na rua e berravam: “fala, Zé Bobo!” Ele detestava essa frase. Dava para perceber pelo resmungo que escapava entre os dentes, quase ininteligível exceto pelo “molecada fiadaputa” que sempre assinava a reclamação. Óbvio que a pivetada provocava sabendo que o xingamento viria e, quando vinha, elas se esbaldavam de rir do palavrão. Criança, quando quer, é um bicho desgraçado.
Mas existia uma outra frase que, essa sim, tirava o Zé do sério. Todo mundo a conhecia. E vira e mexe, quando o sol preguiçoso da tarde pintava de tédio as ruas da Vila Paula, algum desocupado reencenava aquele espetáculo de mau gosto.
Começava sempre do mesmo jeito, com o Zé apontando lá na outra esquina, puxando a perna esquerda no passeio torto dele. Vinha devagar e quase contente, procurando um portão aberto aqui, outro ali. Era uma cena bem banal, pelo menos até que algum infeliz reconhecesse a figura. Quando isso acontecia, alguma coisa na energia da vizinhança mudava. Os pardais voavam para longe, os cachorros latiam e a tia do Yakult até mudava o caminho para não passar perto. O Zé, alheio a tudo, marchava adiante enquanto o agente provocador se colocava a uma distância segura (porque toda crueldade anda de mãos dadas com o cagaço). E aí, movido pelo mais puro suco do sadismo, o arrombado enchia o pulmão e depois berrava: “Ô, Zé: se matar vai preso, hein?”
Será que ele tinha passagem pela cadeia? Será que ele tinha mesmo matado alguém? Teria o Zé jogado a própria cônjuge na represa? Não sei. Mas quando a frase alcançava os ouvidos do Zé, aquela criatura pacata virava o demônio. A primeira coisa que ele fazia era fincar as duas pernas no chão, como se o capiroto em pessoa as prendesse. Depois, enterrava as duas mãos dentro da calça, segurando a bunda. Nessa hora, o caldeirão começava a ferver: os grunhidos e a baba borbulhavam juntos boca afora, num crescendo que todos sabiam onde iria terminar. Era o tempo exato dos vizinhos correrem até o portão de casa para apreciar os últimos segundos da raiva ferventando. E quando aquele vômito embaralhado já se fazia ouvir a mais de uma quadra, o Zé tomava fôlego e esbugalhava os olhos, soltando um uivo ardido e desesperado. Parecia um super sayajin que deu errado. Tomado de ódio, ele tentava voar na direção de onde viera a frase, mas as solas dos sapatos seguiam grudadas na calçada enquanto o corpo dele se torcia feito um arame de prender saco de pão. Dava um pouco de pena e um monte de medo, mas sempre tinha gente rindo, adultos e crianças. O Georgius, filho de um faz-tudo que morava na rua da escola, sempre provocava o coitado para depois comentar: “Olha como ele segura a bunda! Rá-rá-rá-rá-rá!” Era uma gargalhada catarrenta. Dizem as lendas urbanas que o Georgius morreu antes dos dezoito anos, numa mesa de roleta russa. Outra história triste, mas nem de longe tão bonita quanto a do Zé Bobo, que buscava a parceira desaparecida.
Juízos de valor à parte, são essas histórias que dão o tempero a um lugar. Hoje, você anda pela Vila Paula e só vê apartamento com varanda gourmet, academia de crossfit e SUV prateada. Aliás, ninguém mais fala Vila Paula; agora é Bairro Santa Paula. Pode ser pura nostalgia, mas falta alma ali. O Zé dava alma ao lugar – ele e tantos outros personagens que andavam por aquelas ruas de paralelepípedo, bem antes do questionável título de melhor IDH do Brasil sugar a alegria da cidade como se fosse um dementador. Mas as lembranças continuam. E se você ignorar um pouco os salões de design de sobrancelha e os bistrôs que oferecem comida insossa a preços salgados, ainda dá para ouvir o Zé, encostado no muro de uma das casas que sobraram, perguntando se ele pode entrar.
Imagem: Pixabay
Comentários
Curioso saber que 5 anos de diferença, fizeram João virar Zé, rs
Também não tenho comigo a recordação dessa história da mulher afogada, que até faz mais sentido pela questão das torneiras, porém havia uma outra frase que era dita pra irritar o pobre e que era muito condizente com outra lenda urbana sobre ele... (Isso se pudermos considerar urbana a cidade prosaica e provinciana da época)
Segundo meu avô, um senhor de erudição ímpar e um tanto duvidosa, a ponto de roubar dos netos no jogo de truco e, inclusive merecedor de uma crônica só dele, João (que 5 anos mais tarde, viraria Zé) tinha sido deixado pela noiva no dia do casamento... Esse era um ótimo motivo, para que aqueles bem-aventurados jovens nascidos ainda na década de 70, enchessem os pulmões e soltassem a frase clássica:
- Aê, João, quando você casar a mulher é minha!!!
Eh, Vila Paula...! Época boa do João que virou Zé; do Graxinha, o cachorro da rua, do futebol na rua; do vôlei também (e dava um trabalho baixar a rede toda vez que o ônibus passava, maldita hora que a Piauí, virou mão única, rs); de andar de bike; e de levar o campo oficial de botão do meu vizinho de uma casa pra outra pra jogar campeonato... Ah, e tem um campeonato desses que fui violenta e fraternalmente sacaneado por alguém... Relação de amor e ódio que também merece uma crônica a sorte, rs
Depois dizem que sou nostálgico... Não tenho culpa se era tudo melhor...
Acho que anos 70/80 foram uma época muito estranha mesmo, que não dá pra encaixar em lugar nenhum e, como diz o Dom Albir, hj seria inadmissível, mas existia cor, sim. Toda cidade pequena ou bairro de cidade grande teve seu personagem. Geralmente era alguma doença mental, incompreendida, que gerava a lenda urbana. Mas hj em dia, com tudo explicado, parece que essas coisas não tem mais lugar.
Triste, mas tbm um terreno fértil pra escritores.
Gde abço!