FEIRA >> ANDRÉ FERRER

 


Toda semana, um cavalo de batalha. O ponto de partida de uma crônica sempre me pareceu o convívio. Esta pequena cidade, no entanto, desafia-me quando preciso de ideias para um texto. Nas outras onde morei era mais fácil. 
 
Não falo do convívio apenas, mas também dos resíduos que se espalham no entorno do convívio. Uma boa crônica deve ter mais aparas do que qualquer outra coisa. Uma boa crônica só tem 
 
(coragem, audácia, verdade) 
 
leveza se carrega esse tipo de fuligem humana. Outras fontes, infelizmente, são como o petróleo: sabemos da sua finitude, mas não paramos de usar. 
 
Manhã de domingo. Feira. Como pretexto, uma dúzia de tomates e um rolo de sushi. Na macarronada, eu gosto assim: tomate maduro, pitada de curry, pitada de manjerona, água e azeite. Nada de “pomarolas” em plena brainstorm. 
 
Na escolha das frutas, 
 
(OK, definitivamente, tomate é fruta) 
 
silêncio monástico 
 
(outro pretexto para vasculhar e apanhar resíduos). 
 
— Blá, blá, blá... 
 
(não, não, isso é particular demais) 
 
— Blá, blá, blá... 
 
(eu passo!) 
 
 — Blá, blá, blá... 
 
 (irrelevante)
 
— Blá, blá, blá...
 
(Yes: falam do Zeca Pagodinho). 
 
Chuchu e beterraba não estavam nos planos, contudo incluí chuchu e beterraba numa salada futura. Os ouvidos apurados. Havia terminado a etapa seletiva. Eu estava decidido a me concentrar na vox populi e, mais tarde, escrever uma crônica. 
 
— Ei, meu chapa: você viu se ele salvou alguém?! Eu não vi. Nem desceu daquela moto invocada. Fita, meu chapa, fita pras câmeras. 
 
— Então, a pessoa não pode ajudar porque é famosa?! Ora! 
 
— Pode sim. Mas que a mão esquerda não saiba o que faz a direita! 
 
— Marketing! 
 
— Tudo bem. Hoje à noite no Fantástico a gente vê se o Pagodinho ajudou ou não aquelas pessoas... 
 
— No Fantástico?! Ele vai aparecer no Fantástico! 
 
Pronto: já conseguiu o que mais desejava. 
 
 — Parem! — disse o dono da banca. 
 
— Peço licença a vocês. O senhor, aqui, quer pesar os chuchus! Tenham dó! Cir-cu-lan-do! 
 
Dispersaram. O mais feroz deles reclamou, mas saiu. Vi-o, então, lá na frente, parado no seu Kishimoto, o velhinho de quem eu compraria o meu rolo de sushi. Paguei, disse bom-dia e me arranquei para o outro lado. Na barraca do japonês eu encontraria, no mínimo, um contraponto, um viés qualquer, enfim, uma cereja para o meu bolo. 
 
 — Está bravo né! — dizia o velho para o casmurro quando cheguei. 
 
 — Imagina seu Kishimoto! No tsunami do Japão muita gente ajudou. No Brasil, quando ajudam, já tem segunda intenção na parada, marketing pessoal, essas coisas... Eu aposto que havia celebridades ajudando o próximo na tragédia japonesa! E também aposto que o povo do seu país, um país respeitoso e disciplinado, jamais falou mal desses famosos que, tocados, abandonaram a sua zona de conforto e saíram em socorro às vítimas. Por acaso, falaram seu Kishimoto?! 
 
 — Não sei. Não estava lá — disse o velho. — Eu nunca estive lá. Meu avô chegou de lá em 1934 e eu nasci vinte anos depois em Piracicaba. 
 
 
1. Esta crônica faz parte do projeto "Crônica de um ontem" e foi publicada originalmente em 07/01/2013. 2. Ilustração: Pixabay

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Que crônica mais interessante!
Primeiro, obrigada pela receita de molho, estava mesmo pensando em fazer macarrão hoje. Em segundo, entendo perfeitamente o que vc diz, quando refere que em cidade pequena falta assunto pra cronicas. Eu me sinto exatamente assim, mesmo se eu sentar numa posição estratégica, onde dá para ver tudo - na praça, por exemplo. Em algum momento as coisas param ou começam a se repetir e bem capaz de eu ter que escrever uma crônica sobre repetições. De novo.
Mas, no seu caso, você conseguiu uma proeza. Como a cebola que vc deve ter comprado dia desses na feira, sua crônica traz várias camadas: vc procurando assunto, a feira em si, a conversa indignada de palavras soltas ao vento e o caso do seu amigo Kishimoto. Cada uma delas, uma crônica dentro da crônica.
Um texto realmente interessante!
Abçs
Jander Minesso disse…
O último parágrafo foi o arremate perfeito, André. Baita retrato do cotidiano.
Zoraya Cesar disse…
O bom cronista é assim, tem assunto até qd nao tem assunto e ainda encontra nas feiras da vida diversos temas. Mais! Ainda dá receita de molho. Uma crônica verdadeira. Vai lá, vem cá, vai lá, vem cá e qdo a gente percebe, percorreu a feira toda do texto na maior atenção e prazer.

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