DEIXAR PARA TRÁS >> Carla Dias

By Brian Merrill from Pixabay

Uma festa, ele sabe. Ano quatro da existência de uma criança que há pouco chorava um tombo que acreditava ser o pior. Desejou desmentir a crença, mas escolheu evitar brutalizar a inocência dela com a verdade de que os tombos pioram. 

A sobrinha sonolenta enroscar seus braços no pescoço dele e deita a cabeça no seu ombro. A irmã deixa acontecer, porque gosta de observá-los, seus objetos de afeto mais profundo. Ela sorri bonito ao desacoplar a criança do corpo dele e pede que chegue na hora para o almoço do próximo sábado.

A tarde vai se aproximando da noite durante a caminhada de volta para casa. São alguns quarteirões e as ruas estão vazias. Esse é o superpoder da chuva que ele mais gosta. Pensa como seria caminhar sem parar, até que seu corpo se recusasse a continuar. 

Pensa muita coisa ao mesmo tempo. A irmã sempre pergunta por que ele é tão calado, ensimesmado, por que se desconecta tão fácil dos outros, mesmo quando a sala está cheia. Ele nunca responde, sabe que nada do que disser resolverá a agonia dela em saber o que mora nele. Sorri e seu sorriso a tranquiliza, ao menos até o próximo questionamento.

O que mora nele é um espaço impossível de dimensionar, são barulhos impossíveis de mutar, palavras soltas, ideias impraticáveis. No entanto, o que de fato o incomoda são os sonhos. Pudesse descartá-los, ele o faria. Nunca desrespeitaria sua importância, mas pediria que saíssem, que o deixassem a sós. Mas sonhos são insistentes e acreditam que estão sempre certos, que, ao serem realizados, provocarão somente bons sentimentos aos seus hospedeiros.

A campanha de publicidade do universo tem muitas camadas. Tombos pioram, há sonhos que continuarão sonhos, sem caberem no dia de folga, no horário de visita, no diagnóstico inesperado, nas tragédias anunciadas, na tirania da prepotência, na espera desaguando na ausência do outro. Ele sabe do êxtase de quando são concluídos, realizados a contento, já viu acontecer. Nunca desrespeitaria sua verdade, mas se o escutassem, pediria para que o deixassem a sós, desnublassem seus sentidos, mostrassem as cores da crueza da realidade e que ela doesse em seus ossos, rompesse a letargia tecida por um desejo que ele nem sabe qual é, mas que instalou nele uma necessidade sem destinatário.

Pudesse deixá-los para trás, deixaria. Quem sabe assim fosse capaz de compreendê-los, aceitá-los e resolvê-los com realizações satisfatórias esporádicas, das que alimentam bem-estar que permite compreender e lidar com o que mora dentro de si. 

Imagem ©  Brian Merrill from Pixabay

carladias.com


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Ainda bem q nao li num domingo chuvoso. Q delicado esse relato. Pq pra mim é um relato. Delicado, profundo e perturbador de um jeito bom. Li e reli. A gente se solidariza com ele, o personagem, quer vê-lo bem.

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