O SER >> Carla Dias

Hans Thoma, Public domain, via Wikimedia Commons

O ser humano vive de criar formas de se proteger de si mesmo.

Acredita que árvores ameaçam a rede elétrica e que a chuva causa tragédias. Confunde resiliência com abstinência de direitos básicos. É repetidor contumaz da declaração de que é preciso enfrentar todas as adversidades, quando muitas delas são de sua autoria.

Ele tenta e quase sempre desiste, porque se ausenta das urgências para desfrutar de um punhado de prazeres. Qualquer coisa que consiga rotular como necessário, ainda que gerado no bojo do dispensável.

Confunde amor com propriedade, afeto com violência, necessidade com futilidade. Gaba-se de ser capaz de enganar a ponto de não deixar rastro de veracidade na trama que tece. Aprecia impor culpas, constranger quando não entende, rotular para fazer de conta que se esforçou em compreender.

O ser humano vive para evitar a morte, no entanto, não raro colabora para o aumento de emissões de atestados de óbito. Nega para não ter de lidar. Silencia para se afastar da culpa. Ignora para não ter trabalho. Determina para não lidar com contrariedades.

Bicho curioso é esse ser humano.

Acha que não é bicho por ser capaz de pensar, mas abraça a irracionalidade e nem sempre diante da ameaça à sua sobrevivência. Muitas vezes, compactua com ela para fugir dos incômodos, sacando vis justificativas, que aprendeu a vender como soluções necessárias.

O ser humano é capaz de atrocidades e de sincera solidariedade. Mora nele o bem e o mal e suas variações. Nascem dele as guerras e as crias; os santos e os demônios, e os sonhos tirânicos e de mudar o rumo do mundo para melhor.

Criatura complexa, que resgata a si dos abismos, lançando-se aos resgates proféticos ou poéticos. Infame, também se dedica à compreensão − até aqui não alcançada em seu todo – da sua própria importância.

Há dias em que apenas é. Estes são os mais auspiciosos. 

Imagem:  Loneliness © Hans Thomas

carladias.com


Comentários

Paulo Barguil disse…
Carla, que ótimas reflexões sobre os paradoxos que nos (des)ocupam. "Confunde [...] necessidade com futilidade". Sublime!
Zoraya Cesar disse…
O texto provocante de reflexões, como sempre! Mas, dessa vez, mesmo com a delicadeza que lhe é sempre peculiar, dá pra sentir um suspiro de impaciência da Princesa das Palavras nas entrelinhas...
Albir disse…
Na tentativa de encontrar sentido e gerar interesse, o ser humano produz essas ondas, essa troca de valores: ameaça, ataca e quase aniquila, pra depois se desdobrar, salvar e redimir aquilo que quase destruiu. Seus textos têm potencial para muitas prateleiras de teses e reflexões.

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