CONTANTO QUE >> Carla Dias


Desviam-se da calçada de concreto estourado. Raízes de uma árvore cansada se rebelaram e modificaram o cenário do bairro. Trouxe para a rotina do lugar a feiura da beleza exposta. Transeuntes costumam confrontá-la, vociferando o incômodo da sua presença, defendendo a nobreza e a justiça da compreensão compartimentada: se ela morasse na outra calçada, eu gostaria mais dela.

Chega de folhas sujando as calçadas e ruas, de galhos atrevidos de se enroscar nas roupas e cabelos das pessoas. Estava mais do que na hora de descartar a dita, porque ela é dada a acolher barulhentos pássaros que pensam que o mundo é um palco imenso para seus cânticos histriônicos. Esses dispersores de sementes, sujadores de tetos de carros.  

O botequeiro convocou os amigos-clientes para discutir o melhor plano de aproveitamento do espaço que ela deixará ao ser condenada pelo crime de violentamente se estremecer até ferir calçada de concreto mais jovem que ela. Em cinco minutos, o empreendedor estava em posse de uma lista de quem gostaria de estrear a mesa substituta de robustas raízes de uma árvore cansada de provar a própria importância.

Uma senhora para e se apoia nela. Precisa recuperar o fôlego. O vento sopra de bater janelas. Os pássaros escandalizam e cantam mais alto do que as buzinas. O botequeiro estremece ao percebê-la agitada: e se ela cair em cima da gente? Que tragédia!

A senhora toca sua pele, casca de textura do curtido pelo sol e banhado pela chuva, que insiste em gerar beleza, ainda que os pregos de pendurar banners diversos ocupem muitos dos seus espaços, e os sacos de lixo – nem sempre biodegradáveis – durmam regularmente aos seus pés.

A senhora pergunta ao botequeiro quando é que vão tirar de vez esse estorvo do caminho. E se eu cair por causa dela? Eu sou uma senhora! O que farei se algo absurdo assim me acontecer?

Ela desliza a mão pelo tronco da árvore e cochicha que em breve ela sumirá dali, deixando espaço para as caminhadas que a mulher gosta de fazer, apesar da respiração prejudicada pelos três maços de cigarros que consumia no antigamente, e que, com muita dedicação, transformou em apenas dois no atualmente.

Contanto que não fique no caminho.

Contanto que as folhas não sujem as calçadas, suas flores não se espalhem pelas ruas e entupam bueiros já incapazes de dar conta das garrafas PET que engolem todos os dias.

Árvores são apenas árvores. Podem ficar ali, naquele lugar de embelezar cenário, contanto que não atrapalhem ou deem trabalho. Que não se atrevam a violentar o concreto das calçadas pelo desejo de se expor: raízes. Pessoas são apenas pessoas. Muitas vivem naquele lugar debaixo de outro lugar, misturadas ao lixo e ao desamparo. Lá podem permanecer, contanto que não atrapalhem a realidade dos indiferentes. Contanto que não esfreguem na cara dos que escolheram ignorar sua existência, que nas mesmas ruas onde moram eles urinam, amam-se, atacam-se, protegem-se, desesperam-se, reinventam-se.

Comentários

Albir disse…
A cegueira voluntária torna invisíveis os indesejáveis.
Nunca esqueci uma frase, que já não sei de quem é: "Abraçado à última árvore, sucumbirá o último homem."
Carla Dias disse…
Que frase, Albir.
É isso... torna invisíveis os indesejáveis.
Paulo Barguil disse…
A árvore e suas raízes nos convidam, Carla, a refletir sobre os nossos incômodos e as sugestões para extirpá-los do nosso convívio, comprometido pela nossa indiferença e ganância, mal disfarçada por discursos igualitários.

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