NOTÍVAGOS >> Zoraya Cesar

Ele caminhava pelas ruas mal iluminadas, desertas, de uma vizinhança afamada como perigosa e sinistra. Havia poucas lâmpadas acesas -  a maioria, quebrada - fazendo com que a noite de inverno ficasse ainda mais tenebrosa. Somente os corajosos, os desavisados, ou os que não tinham alternativa estariam por ali àquela hora. 

Devia ser o quê? Talvez três da madrugada, um pouco mais, um pouco menos. Ele não saberia dizer ao certo – seu relógio quebrado durante uma refrega e ainda no relojoeiro. Mas era tarde, seu cansaço e a fome não lhe deixando dúvidas quanto a isso. 

Finalmente, encontrou o lugar que procurava. A luz amarelada e forte da lanchonete clareava parcamente a semi-escuridão, e ele se dirigiu para lá, cauteloso, lento, como o beduíno que busca o oásis no deserto: sedento e trôpego de exaustão, mas atento aos predadores noturnos.

Entrou e, imediatamente, como sempre acontecia quando ali estava, sentiu-se em casa. O Phillies era um refúgio aos notívagos, um lugar para descansar o corpo sofrido e a lassidão da alma. 

A lanchonete era pequena, embora ocupasse os dois lados de uma esquina. Largas janelas envidraçadas deixavam à mostra o seu interior e, de longe, um passante podia ver o longo balcão de madeira em formato de L e os bancos fixos ao seu redor, único espaço onde os fregueses podiam sentar e comer. 

Havia um casal sentado lado a lado, ambos calados, ante duas canecas de café aparentemente já sorvido. Um jovem atendente de uniforme branco inclinava-se para pegar algo debaixo da pia. Tudo parecia calmo. Entrou. 

Sua chegada não causou estranheza, ninguém nele prestou atenção. Sentou-se de frente para o casal, do outro lado do balcão, e pediu, também ele, um café, forte, sem creme, acompanhado por um sanduíche de presunto com ovo. Estava com fome, oh, Deus, como estava faminto.

O chapéu baixado sobre os olhos, ocupou-se, até por vício há muito adquirido, a observar em volta, enquanto aguardava que o atendente preparasse seu pedido. 

A mulher, linda, ruiva, deslumbrante em seu elegante e decotado vestido vermelho, olhava as próprias unhas, absorta em si mesma. Ele sentiu, mais do que viu, que, debaixo da maquiagem perfeita, havia um certo embaciamento da pele, uma certa rigidez de feições. Ela levantou momentaneamente os olhos e, neles, o homem do outro lado do balcão viu o abismo dos que já não têm mais esperanças. Era o que ele mais gostava no Phillies; lá, todos – ou quase todos - podiam se despir de suas máscaras. 

Eis um sujeito que sabe cuidar de si, pensou, olhando discretamente para o homem sentado ao lado da ruiva desiludida e voluptuosa. Ele tinha o olhar agudo e fixo dos que não gostam de ser contrariados, a boca fina e o nariz aquilino. Suas faces eram encovadas e, o queixo, quadrado. De vez em quando tragava o cigarro que trazia entre os dedos e soltava lentamente a fumaça pelo nariz. Sua mão e a da ruiva descansavam próximas uma da outra, mas separadas por uma invisível, embora perceptível, parede de gelo e indiferença. 

Não, decidiu o homem que chegara por último, não eram um casal, apenas estranhos que sentaram juntos.

Estranhos e solitários, como ele. Como, até mesmo, o jovem atendente, que olhava a mulher com os olhos arregalados de quem descobre a beleza proibida pela primeira vez.

Depois que seu cigarro terminou, o homem de nariz aquilino não se mexeu mais. A mulher, também não. Ninguém dissera palavra. Tudo era silêncio e escuridão do lado de fora. Tudo era silêncio e solidão do lado de dentro. 

Comeu vorazmente seu sanduíche e continuou onde estava.

Sua experiência lhe dizia que uma mulher como aquela, bem vestida e bem tratada, não estaria na rua àquela hora se não fosse habituada ao bas fond, ao submundo, ao perigo. Era uma mulher da noite e, obviamente, segura de si. Por instinto, ele sabia que o homem de terno impecável e olhos implacáveis ao lado dela era um meliante, provavelmente guarda-costas de algum bandido em ascensão, ou, mais provavelmente, pistoleiro de aluguel.

Sentado sozinho, a cabeça baixa, o homem que chegara por último gostaria de quebrar o silêncio e conversar com a mulher; talvez ela não estivesse cansada demais e consentisse em dividir o leito com ele, oferecer sua carne quente, branca e macia, por algumas horas apenas. Gostaria de quebrar o silêncio oferecendo um cigarro ao homem, uma última bebida antes de saírem para a noite fria e o destino inevitável que os aguardava, cada um do lado do caminho que escolhera para suas vidas. Faria, também, alguma observação para o atendente, por que não?

Mas não fez nada disso. Sabia que, embora fosse como eles - predadores soltos na noite, aves notívagas sem pouso certo -, sua tentativa de socialização não seria bem vinda. Prostitutas, bandidos, atendentes que vendiam drogas por baixo do balcão… nenhum deles iria querer a companhia de um policial. Por mais solitários que todos estivessem.
.
O Phillies era seu lugar preferido. Lá todos podiam ser quem eram sem dar satisfações a ninguém.
Nada era perguntado. Nada era respondido. 


Foto: Nighthawks - pintura de Edward Hopper

Comentários

Marcio disse…
Excelente descrição. Parabéns à sua capacidade de criação de todo um universo ficcional, a partir de tão poucos elementos.
Só não vou dizer que isso me surpreende, porque já me habituei ao alto padrão Zoraya Cesar de literatura. Estou muito mal acostumado.
Anônimo disse…
Interessante, apesar que a tal Cidade não tem nada do Rio de Janeiro ultimamente!
Gostei do "carne quente, branca e macia", mas porque tem que ser "branca", mais um indício de que não se trata do Rio de Janeiro também, hehehe...
E policiais não arrumarem nada na noite, também nada a ver com o Rio de Janeiro, hahaha...
Bafão disse…
Menos é mais! Acertou na mão, menina! Naturalismo a la Zola-ya. Apenas dois comentários, que não pretendem desabonar em nada seu excelente texto: faltaram as palavras "havia" e "estava" na segunda linha do segundo parágrafo e o balcão da foto não é em L. No todo, muito bom!
Clarisse Pacheco disse…
Amei sua sensibilidade e interpretação dessa pungente obra de Hopper!
Anônimo disse…
Quando eu vir a pintura de novo agora estará atrelada ao seu conto, Vou sempre lembrar!
Anônimo disse…
Quando eu vir a pintura de novo agora estará atrelada ao seu conto, Vou sempre lembrar!
sergio geia disse…
Adorei, Zoraya! Que exercício de imaginação para transformar-se numa bela obra literária.
Erica disse…
Leitura que prende pelos detalhes e descrição. Tá na hora de investir em um livro inteiro... história longa, nada de contos que acabam rapidinho rsrs

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