ANJOS E PARAÍSOS >> Albir José Inácio da Silva

Toda vez que Stepan Nercessian aparece na televisão, acabo transportado ao personagem  Marcelo Zona Sul naquele cinzento ano de 1970.

Um tempo em que não cabiam aquelas suaves transgressões adolescentes, mas, como meu coração ainda não enxergava as cinzas, eu só via o paraíso em que se espalhavam e, às vezes, se entediavam aqueles jovens.

Enquanto diplomatas estrangeiros eram sequestrados, o Brasil virava tricampeão e eu sonhava com o mundo de Marcelo. Não era apenas inveja que eu sentia, era uma espécie de reverência.

Copacabana, Lagoa e Alto da Boa Vista eram muito mais do que minha imaginação dizia sobre o pobre Éden com suas árvores, cobras e maçãs. Era lá, na zona sul, que a vida devia acontecer de fato para os que merecessem.

Eu achava que não merecia porque fazia coisas abomináveis, até que vi, ou imaginei, que Marcelo fazia tudo aquilo com a naturalidade de um anjo. Isso servia como anistia geral, mas não se aplicava a tudo. Algumas transgressões só podiam ser cometidas por ele. Pra mim seriam heresias.

Eu também não encontrava respostas para algumas perguntas. Havendo um ator lourinho feito querubim, por que ele não fazia o papel de Marcelo? Louro não fica melhor como protagonista?

Outra questão que me confundia a cabeça era a indignação de Marcelo ante a ameaça do pai de obrigá-lo a trabalhar num escritório. Filho de operário, trabalhar num escritório era o meu sonho mais acalentado. Como podia isso ser castigo? Parece até condenação de juiz corrupto no Brasil - ganhar salário sem trabalhar pelo resto da vida, numa espécie de enriquecimento sem causa autorizado por lei.

A música que termina o filme, “Canção da Volta” de Denoy de Oliveira, parece que ainda nos define a vida tanto quanto naquela época:
“E assim termina a nossa história. Que será de Marcelo? E o que será da gente triste que trabalha sem amor? Aonde irá teu sonho, louco por voar?”

Quase cinquenta anos depois, não acho mais que louros são melhores que morenos e fico entediado com trabalho sem amor.


E sou tentado a dizer, parafraseando Drummond, que “eu não sabia que minha história” em Madureira era tão bonita quanto a de Marcelo Zona Sul.

Comentários

Carla Dias disse…
Ah, que crônica-lembrança lindeza, Albir!Eu gosto do Stepan Nercessian...
Zoraya Cesar disse…
Uau! Boa lembrança, Albir! Nem me lembrava mais do filme, realmente, marcou uma época. Stepan Nercessian, irreconhecível. E você, como sempre, embrulhou essa lembrança numa linda crônica, delicada e agradável. Valeu!

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