LEMBRANÇAS DE SALVADOR >> Sergio Geia
Estava hospedado
no Malibu Hotel, em Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador. Mel, guia,
passou o roteiro: Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, Memorial Irmã Dulce,
Mercado Modelo, Elevador Lacerda, Pelourinho, Igreja e Convento de São
Francisco, Farol da Barra, Praia do Forte, Praia de Itapuã.
Itapuã, uma
exigência minha.
Os demais
passeios eram tipicamente passeios de turista de primeira viagem. Pois digamos
que assim eu era: nunca havia estado em Salvador, e, como todo bom turista que
aterrissa em terras soteropolitanas, queria conhecer tudo.
No domingo, estive
no Rio Vermelho. A região passara por obras, e estava pronta para a festa de
Iemanjá, que aconteceria dali a dois dias. No entanto, o meu destino não era a
região da festa, onde os barcos atracam, avolumam-se oferendas, onde há música
e fé, mas o número 33, da rua Alagoinhas. E num domingo — não haveria dia melhor
para aquela visita que um domingo, dia preguiçoso, de silêncio, oração, vida devagar,
ruas vazias, sons de vira-latas e bem-te-vis. Eu parei na ladeira e respirei um
ar fresco, defronte à casa que tão bem me receberia e onde passaria momentos de
agradável distração. Admito que poucas, poucas vezes na vida me senti tão bem numa
residência, como na casa de nº 33, da rua Alagoinhas.
Uma plaqueta
no jardim dizia: “Cadê o seu Jorge? Está no seu jardim. Ao lado de Zélia. E de
um pé de jasmim.”
Pois eu
estava no jardim, ao lado de Jorge, de Zélia e de um pé de jasmim.
Uma máquina
de escrever Royal, óculos, canetas, facas, algumas anotações do que seria um
novo livro, uma carta escrita por Lobato, camisas estampadas e vestidos de
gala, uma enorme biblioteca. A casa inspira e, num certo momento, ouvi Jorge
falando atrás de mim. Ele se mostrava preocupado com o povo brasileiro que,
segundo ele, vive às minguas, numa situação de penúria tão grande e tão
terrível, que até dá a impressão de ser milagre viver no Brasil. Depois
concluiu: “E o povo ainda faz festa. É um povo forte, poderoso”. Eu estava
apalpando uma Telefunken, instalada na sala à frente de duas cadeiras e duas banquetas,
lembrando-me da minha avó, que lá na Professor Moreira, também tinha uma.
Essas coisas
todas ficaram na memória. Mas, como todo bom turista, tratei de tudo fotografar.
E agora, noite, sábado chuvoso, tomando uma taça de vinho aqui em casa, revejo
fotos.
Lembro que
fui parar em Buraquinho, dica de um taxista. Lá, também os pescadores celebram
Iemanjá. As fotos agora não me deixam mentir. São baianas com seus vestidos
brancos, colares de contas e turbante na cabeça. O céu é carrancudo. Naquela
manhã fez sol, depois caiu um toró; depois, com chuva ainda, fez sol; depois outro
toró veio do mar. As pessoas chegaram aos poucos, com suas flores. O registro
do pequeno barco, mais parecendo uma floresta, tem cheiro de alfazema. Me
surpreendo agora (sim, como não notei no dia?) com a foto de um homem que é a
cara do meu falecido pai. O mesmo cabelo pintado, os mesmos óculos, a mesma
barriga. Se ele já não tivesse morrido, eu diria que esteve na Bahia, pra festa
de Iemanjá.
Outro
registro interessante: uma sanfona, um pequeno órgão, copo, caneca de café,
escova de dente, pente, óculos. São coisas de Irmã Dulce. A pequena cama de
madeira que propiciou descanso àquela batalhadora está ali. De repente, surge a
foto de um homem desconhecido. Quem será esse cidadão que se atreve a ser destaque
numa foto minha? Por qual motivo ele está ali ao lado das coisas de Irmã Dulce,
sorrindo, fazendo pose e tudo? Puxo da memória, mas o máximo que encontro são
galinhas do convento que Irmã Dulce transformou em canja para alimentar seus
doentes, no galinheiro que se tornou hospital.
Ah, a fotografia.
Assim como a crônica, ela consegue trazer lembranças esquecidas, num
renascimento suave de situações, normalmente a açular bons sentimentos. E
fotografia tem cheiro. As minhas aqui têm cheiro de canja, de alfazema, de
camarão. Ora, como não me lembrar daquele risoto memorável saboreado num bar no
Rio Vermelho? Tenho fotos do momento. Nada de axé, Ivete, Claudia, Timbalada ou
Olodum. O proprietário é mais rock. Ao fundo do balcão, onde trabalha um baiano
sossegado, há gravuras em preto e branco, delicadamente emolduradas, dos
Beatles, do Elvis, do Mike Jagger. Num canto, um enorme quadro com a caricatura
de John, Paul, Ringo e George e um escrito de letras grandes: “The Cavern Club”.
Há um registro do meu risoto. Consigo até enxergá-lo fumegando; consigo até
sentir o aroma da cachaça.
São muitas
fotos. Vou passando com rapidez pelo Mercado Modelo, Elevador Lacerda, Baía de
Todos os Santos, um marzão, barquinhos, Praia do Forte, uma igrejinha azul e
branca, Farol da Barra, Pelourinho, até que me detenho numa. A luz indica que o
registro foi feito à tardezinha. É uma praia. Vejo duas pessoas em pé ao lado
de um guarda-sol jogando frescobol, uma mulher debaixo de outro guarda-sol.
Vejo alguns barquinhos, uma pedras, um mar. A fotografia pegou até os
coqueirais, a areia. Puxo da memória. Itapuã. Posso até ouvir o mar, sim, ouço
o mar de Itapuã. Ah, linda tarde foi aquela em Itapuã...
Vou puxando tudo,
de uma memória ouriçada pelas fotos, ouvindo sons, sentindo cheiros, identificando
sabores; a sensação é boa, mas logo o vinho acaba. Deixo tudo no sofá, vou à
cozinha, me brindo com uma nova taça, e esquento a pizza, que, fria, jazia
molhada de azeite dentro do velho forninho.
Comentários
Salvador é isso: Uma mistura de aromas, cores e sabores. Que saudade!
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