PRIMAVERA >> Carla Dias

Prawny por Pixabay

Chacoalha a árvore esquelética, provocando nela um grito de folhas e flores em queda. Restam-lhe poucas, e mesmo admirando sua coragem, quer entender a razão de ainda estar ali, resistindo, cercada de um vazio de descarte, de esgotamento. Ninguém mais olha para ela por apreciação, mas há quem planeje o que irá substituí-la: lavanderia, minimercado, ponto de táxi. Alguém plantou um varal em seus galhos quase nus; encostou no seu corpo uma placa de “vende-se”, depois partiu, deixando memórias penduradas em sua existência. Tornou-se uma estação de abandono de memórias e sacos plásticos. Serve para quê? Aterrada na calçada, o concreto a carcomer sua identidade, já que nem sabem mais dizer à qual família pertence. Ele tem certeza de que ela escolheu não ir embora. Resiste à opulência do fim, do não caber mais, de não haver espaço para amparar desvalidos. Tornou-se um porto de sonhos enviuvados de realização. Ela oferece pouco ao olhar dos transeuntes; sua beleza já não é registrada por celulares ávidos pela melhor foto. Vez ou outra, eles tropeçam nas suas raízes e maldizem a ancestralidade daquele ser que já deveria ter sido extirpado do mundo. É preciso inovar, melhorar o produto do supermercado existencial. Ele olha para ela e pergunta: servimos para quê?

Imagem © Prawny por Pixabay

carladias.com.br


Comentários

André Ferrer disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
André Ferrer disse…
O pragmatismo voltado para a tradição e a fixidez é substituído pelo pragmatismo voltado para o "serve para quê?" ou, principalmente, para o "serve para que agora?". Ontem, à tarde, estive lendo algo acerca de Bauman e as sua solução filosófica-sociológica para a continuidade da modernidade em contraposição aos teóricos da pós-modernidade. Para Bauman, houve ruptura, mas para uma modernidade fluída, líquida, de 1945 para cá. Antes disso, a modernidade era sólida e arraigada nas tradições. Na fixidez. Muito bem, pode ser o tal fenômeno da expectativa, no meu caso - a gente pensa num carro azul e acaba vendo só carros azuis -, mas o fato é que vi o confronto estudado por Bauman no seu texto: um fluído saco ao vento, vulgar e onipresente, contra a fixidez das árvores cada vez mais estranha ao ser humano. Um belo texto da Carla Dias.
Zoraya Cesar disse…
Carla, Carla, Carla. E lá fui eu cometer o erro que eu garanti que nao cometeria, e li vc num domingo à tarde. Bem feito. Enchi-me de tristeza lírica irremediável. Só me perdoo pq ler vc é um privilégio.
Carla Dias disse…
André e Zoraya, grata pela gentileza da leitura e dos comentários tão bacanas. Não fico apenas feliz em lê-los, também aprendo com eles. Obrigada!

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