COISAS DE FIM DO MUNDO >> Carla Dias

Imagem © Lars Nissen por Pixabay

Como remanescentes de fim do mundo, tiveram de engolir preceitos que definiam sua existência, de antes desse momento em que, imaginavam, estariam mortos e enterrados, depois de viverem uma longa e nem sempre feliz existência.

Mas a vida foi descortês na sua dose de audácia, e ao fazer as suas costuras, emendou o fim do mundo. Aliou-se à morte para continuar viva.

Por isso estão ali, quatro sujeitos condenados à vida. Sem ter para onde ir ou para quem voltar. Privados de pretextos para fazer planos, tampouco para sonhar. Eles têm apenas o único espaço que resistiu ao fim do mundo: a plataforma de uma estação de metrô, um toque de deboche e sandice do destino, amigo íntimo da vida.

Todo o resto é um vazio, o avesso do tudo. Um nada pesado e barulhento.

Foram poupados pela ironia. De modo nenhum são felizardos, mas sim condenados. Suas importâncias caíram de posto, tornaram-se desimportantes.

Cada um deles pertence a um universo distinto. Ela era diretora de uma das maiores empresas do país. Foi parar na estação do metrô, ao ir atrás do filho, que correu para lá, fugindo da exigência da mãe de uma explicação sobre ele ter afanado umas centenas de dinheiros da carteira dela.

Ele é vendedor de baralhos. De segunda a sábado, estendia a toalha de 2x2 na calçada da grande avenida que ela amava mais do que a ele. A toalha foi cortada e costurada pela esposa, um dia antes de ela partir sem dizer para onde e voltar nunca mais. Era pintor de quadros, mas tudo na sua vida diminuiu, depois da partida dela, até as telas em branco. É um talentoso pintor de cartas de baralho, que são obras-primas inspiradas por uma saudade resistente.

Ela era gari na zona sul. Passava horas do dia varrendo ruas bem pavimentadas, nas quais gostaria de andar descalça, apenas para sentir a plenitude de um chão sem buracos e esquecer do sonho do pai em vê-la doutora. Nunca entendeu o motivo de as pessoas sonharem para os outros. Acreditava que isso só podia dar em sofrimento.

Ele era um mentiroso muito querido. Contador de histórias em hospitais onde os pacientes careciam de tempo para viver o que desejavam, quando nem desejo abrasador poderia resolver isso. Especializou-se em iludir finais. Suas histórias abrandavam a agonia de quem nem imaginava ser capaz de passar alguns minutos sem ela. 

Ela chora toda vez que se lembra do filho, aquele desmiolado, apreciador de música ruim e vinho barato. Ele distribui suas cartas sobre a toalha e se perde em pensamentos sobre como colocou cada traço em cada figura, de como a saudade ainda lhe corrói. Saudade de pintar e de abraçar sua esposa. Ela anda pela plataforma, descalça, sem ver sentido na gentileza daquele chão para com a sola dos seus pés. Houve um dia em que se imaginou doutora. Ele conta histórias para a criança do poster enquadrado e fixado na parede, mas às vezes se contém, porque há o que jamais diria a uma criança, como, por exemplo, o mundo vai acabar. 

Livres da fome e do cansaço, seus corpos jamais recendem à necessidade de banho. São espectadores da morte e de uma imensidão que só lhes era possível contemplar quando a NASA compartilhava as melhores imagens.

É tanta vida na morte a sufocá-los.

Sem ideia de há quanto tempo de fim do mundo moram naquela plataforma, apostam viverem no Ano I da Morte. 

Nunca conversaram uns com os outros. Ainda são incapazes de compartilhar suas tragédias, o que o fim do mundo acha uma tragédia e tanto.

Imagem © Lars Nissen por Pixabay


carladia.com

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Carla, de todos os seus textos maravilhosos, esse é um dos espetaculares. Quanta dor, quanta perda, quanta vida na morte. Ainda bem que nunca mais te leio nos domingos à noite. Tem tandos desdobramentos filosóficos, psicológicos, tantas camadas, q a gente, pra nao se afogar, fica apenas com uma: a solidão da morte.
André Ferrer disse…
O conto leva-nos a olhar para a vida e para a morte exatamente como elas são: um único fenômeno.
Carla Dias disse…
Zoraya, que bom que você deixou os seus domingos para as levezas. Precisamos delas. Sorte minha essa escolha não significar encontrá-la por aqui, em palavras.

André, é isso...

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