Joaquim e(m) Gabriela >> Alfonsina Salomão


    Joaquim estava perdido em Gabriela. Penetrara suas entranhas, onde navegava qual minúsculo feto no útero materno, e não sabia como sair de lá. 


Gabriela de nada desconfiava. Executava suas tarefas diárias sem notar sua presença. Às vezes sentia cócegas, um bater delicado de asas de borboletas em algum segmento do corpo, mas não dava trela. Afinal, eram tantas as funções vitais que se exerciam continuamente no seu organismo, independentes de sua consciência. O mistério das células sempre a fascinara, mas não era tola o suficiente para buscar entender como funcionavam.


Enquanto isso Joaquim se debatia, dava braçadas no sangue vermelho, afogava-se. Engolia hemácias, hemoglobinas, anticorpos; cuspia vírus, micróbios, bactérias. Agarrava-se desesperado nas extremidades dos órgãos pelos quais passava, levado pelo fluxo incessante da circulação da amada. 


Sua família estava preocupada, não o viam há mais de mês. Gabriela ficara ressentida com o desaparecer inusitado, Joaquim parecia tão interessado. Chegara a pensar que era ele, o tão esperado homem da sua vida. Mas não, Joaquim era como todos os outros, senão pior: desaparecera sem dar notícias, antes mesmo que sua primeira noite juntos chegasse ao fim. Uma hora estava ali, fazendo amor intensamente, beijando suas pernas, penetrando-a como se fosse a única mulher no mundo; na outra tinha desaparecido, evaporado no ar. O filho da mãe partira silenciosamente, devia ter saído nas pontas dos pés, cauteloso para não emitir ruídos, pois Gabriela, que se recompunha no banheiro ao lado, nada escutou. Ele nem mesmo se dera ao trabalho de enviar uma mensagem pelo telefone. Conseguira o que queria e escafedeu-se, simples assim. Os homens estavam mesmo cada vez mais desabusados. Da próxima vez, seria ela quem partiria primeiro. Vestiria as roupas, calçaria os sapatos e iria embora com a cabeça erguida. 


Às vezes, ela tinha a impressão de ouvir uma vozinha ecoando dentro de si, um grito abafado: “Gabriela, Gabriela... Me ajude, só você pode me tirar daqui”. Parecia a voz de Joaquim. Nestes momentos Gabriela se detestava por ainda pensar nele. Enfiava a cabeça debaixo do travesseiro e se esforçava para adormecer, orgulhosa e ofendida, indiferente aos clamores do coitado.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Uau! Que texto incrivelmente inusitado! Uma história de amor, de desamor, de terror, real e possível pelo ponto de vista de Gabriela, surreal e apavorante do ponto de vista de Joaquim... amei!
André Ferrer disse…
E quem diz que não é assim? Passando para ler e comentar. Adorei.

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